BORBOLETAS SEM ASAS & MAIS

BORBOLETAS SEM ASAS I (2008)

Tu és minha religião. Queria ser a tua,

mas teus deuses são outros e convêm

mais para ti que aqueles que me veem

e me aconselham a imagem que me estua.

Sou ingrato a meus deuses. Sob a lua,

sou herege por ti e me sustém

essa fé no invisível. Não se tem

fé senão no impossível, nessa nua

certeza do jamais que não se toca,

nem cheira ou lambe, no que nunca se vê,

pois crer no que se vê é só ciência...

És fantasma de mim, que a mente invoca,

À neblina da noite, em que se crê,

quando o ato nos falha e é só potência.

VIDAS SOTERRADAS I (2009)

Real, real, o fantasma deste sonho

que sinto ainda nos dedos o macio

da capa apeluciada. Ainda o bafio

de sua respiração. Ainda me ponho

imóvel diante dela. Talvez dormisse,

mas estava em pé agora e a abraçava,

sentia-lhe a carne tenra e circundava

com as mãos os ombros finos que cingisse.

E as mãos dela percorriam-me a cintura,

sólidas mãos, de dedos delicados...

E o sabor de seu beijo permanece,

tão doce a lâmia em maldição tão pura,

criada apenas em tais enevoados

desejos marchetados numa prece...

quetzalcoatl I (2008)

com as asas da noite fiz pincel

para pintar teu rosto nas estrelas:

ficaram mais fulgentes, bem mais belas

do que antes que lhe desse esse laurel

e compusesse, em cor feita de mel

a constelação nova, que as donzelas,

lá no futuro apontarão, singelas,

como sendo esperança, paz, quartel...

pintei teu nome com o palor da Lua:

não foi o teu semblante, foi a poeira

que resultou de um braille perfurante.

gastei a noite. cada asa fez-se nua,

até gravasse a letra derradeira

da negra luz escura e fulgurante.

HUITZILOPOCHTLI I (8 mar 11)

Tive uma ideia, mas não sei onde a guardei...

Ou quem dirá, quem sabe, já a perdi...

Guardei no bolso e depois me distraí:

foi-se essa ideia e nunca mais lembrei.

Não faço ideia de que tipo ou de que lei

foi essa ideia que nunca mais eu vi.

se foi aviso ou ideal que concebi,

caiu do bolso e nunca mais a achei...

Quando se sabe sobre o que era uma ideia,

viva em si mesma, no fragor do pensamento,

sempre há um anzol para tal prosopopeia:

a gente encontra alguma senda, alguma aleia,

quando se sabe se é razão ou sentimento

que desenrole o pergaminho da epopeia...

GOTAS DE CHUVA I (JAN 2009)

São sentimentos humanos tão antigos!

Nada há de novo que tenha a te dizer...

A solidão é o que mais sinto, ao conhecer

que são apenas os costumes inimigos

que nos separam assim desses abrigos

em que me poderias pertencer

e eu a ti, num instante de prazer,

ao nos mesclarmos sem quaisquer perigos!

E é justamente por te saber tão perto,

enquanto longe estás, que aumenta a dor,

ainda que saiba poder confiar em ti.

Mas é a presença que vejo no deserto

que o torna mais vazio, em seu ardor,

pois nem sequer tua sombra consegui...

GOTAS DE CHUVA II (01 SET 11)

São sentimentos comuns e corriqueiros

como navalha raspando o coração,

a me cortar as artérias da ilusão

e as veias me barbeando, bem certeiros!

Ventos apenas que empuxam os veleiros,

a navegar por nuvens de algodão,

os sentimentos bem vulgares são,

em conceitos quotidianos e brejeiros...

Porque brincaram alegres no meu peito

tais sentimentos de sabor mais puro

com desalentos de teor mais duro,

apenas a troçar do meu despeito,

agora que sua ausência eu amarguro,

por mais vulgar que fosse o seu trejeito!

GOTAS DE CHUVA III

O que foi que senti, que não sentiste?

O que foi que,por tua vez, não descreveste?

Quais as quimeras que não acolheste,

quais as miragens que também não viste?

Ah, sentimentos de cada peito triste!...

Que igual que eu, também tu escreveste,

que igual que eu, falar também soubeste,

furando o coração qual lança em riste!...

Nada de novo existe sob o Sol,

nem se concebe de novo sobre a Terra

e nem tampouco amortalha a luz da Lua...

Que amor rebrilha qual facho de farol

e quando o Sol desponta, já se encerra,

deixando em seu lugar saudade nua.

GOTAS DE CHUVA IV

E assim, não te direi nada de novo

ao descrever os variados sentimentos

que da paixão acompanham os momentos,

em que as graças do amor outra vez louvo...

E podes ter certeza... Que o renovo

das mesmas ilusões e encantamentos

outra vez sentirás, doces tormentos,

ou agora sentes, se teu olhar comovo...

Resta saber é se o alvo dos suspiros,

esse rosto que espelha os teus afetos,

suspirará por ti na mesma hora...

Ou se Cupido, como sempre, erra seus tiros

e de travesso, torna mais diletos

os que já amam outras neste agora!...

GOTAS DE CHUVA V

E novamente, à metáfora reverto

que tanta vez foi descrita no passado:

de como o coração é comparado

à aridez estéril do deserto...

E como, se num instante, o céu aberto

deixa cair a chuva, descuidado,

no deserto e não no eito preparado,

o solo árido é para o amor desperto...

Gotas de chuva ou lágrimas em gotas,

umas insípidas, outras de amargura,

brilham no solo e a areia reverdece...

Mas chega outro desprezo, com suas botas,

e esmaga essas folhinhas, que as descura,

muito mais breves que as letras de uma prece!

GOTAS DE CHUVA VI

E assim, eu não serei original,

ao comparar amor à meiga chuva,

ao recordar a metáfora da luva,

cada um dos dedos como símbolo sexual;

e assim como a saliva é mais sensual

do que o sumo adocicado de uma uva,

do mesmo modo que uma língua fulva

é mais melíflua que o orvalho natural,

gotejarei somente em teu ouvido

essas palavras que já ouviste no passado

ou essas tantas que escutar querias:

serei gota de chuva, em teu olvido,

a pingar, num carinho compassado,

os mesmos sonhos com que um dia te iludias...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 06/09/2011
Código do texto: T3204928
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