Reverência crioula

Já bem perto se divisa

Do rancho, a humilde cancela:

Rude armação, sem tramela,

Da campesina paisagem.

Ao vê-la se tem a imagem

De um coração sempre aberto,

Convite amigo, por certo,

Pra quem chega de viagem.

Vem latindo, campo a fora,

Velho guaipeca baixote,

Provoca o zaino e um pinote

Identifica o parceiro,

Colita em pé, mui faceiro

Anuncia que é de casa

E uns gravetos sobre as brasas

Reaquecem o carreteiro.

Num galpãozito barreado

Desencilha a montaria;

Ouvirás a gritaria

Da piazada contente,

E um arrepio dá na gente

Sentindo os lábios da china,

E o corpo todo se inclina

Nesta laçada envolvente.

Alisa o pelo do zaino

Em sinal de gratidão,

Dá-lhe água fresca e ração

E larga pro pastoreio:

Chega ao fim mais um rodeio

Pelas canhadas da vida,

Carreteada já vencida,

Passo cruzado no meio.

Larga num canto os arreios

Sovados pela geada,

E entrega pra gurizada

Freio, rebenque e buçal,

E completando o ritual

Ajeita pra um sossego,

Num catrezinho, o pelego

A um indiozito bagual.

Atira o corpo num cepo

E chimarreia à vontade;

Afaga aos poucos a saudade

Vendo a chama que crepita;

Sorrirá a china bonita

Às façanhas e peleias

Cantadas à boca cheia

Enquanto o peito se agita.

Sobre a mesa a lamparina,

Junto um lote de lembranças;

Meio com sono, as crianças

Curiosas, tentarão adivinhar

Presentes que irão ganhar

Nesta noitada buenacha

De um Papai Noel de bombachas

Pela vida a carretear.

Um vestidinho de china

Tendo na barra florezinhas,

Sapato branco, de alcinhas

E linda "bruxa" de pano,

Recuerdos que todo ano

Serão nas festas lembrados,

Casamentos, batizados

E nos passeios pampeanos.

Pro gruri, nova bombacha

Azul, com favinhos de abelha,

Um lenço em cor vermelha

E um caminhão baoiadeiro;

Bem entonado e lampeiro

Desfilará em seu pingo

Nas carreiras de domingo

No passo do carpinteiro.

Destina à tua companheira

Lindos cortes de fazenda,

Despertando nessa prenda

Vaidades adormecidas,

No dia-a-dia esquecidas

Entre a sanga e o fogão:

Merecem ser estas mãos

N'água de cheiro embebidas.

Chegará a meia-noite

No velho rancho, sem luxo:

Mosteiro do bom gaúcho,

Edificado com ardor;

Ergue preces em louvor

A Virgem Nossa Senhora

E a Cristo Jesus que agora

Renasce no puro amor.

E num cantinho da sala,

Um presépio improvisado:

Celeste piá deitado

Entre boizinhos de osso,

Cusquinhos de rabo grosso

Da mais campeira feitura

E a Jeseus vêm com ternura

Três Reis Magos de caroço.

Chora a china emocionada,

Desculpa-se por não ter

Presentes pra oferecer

Embora sendo o desejo;

Braços aberto e um beijo

Revelam com justo orgulho

Que lá pras bandas de julho

Terão um novo festejo.

Costela de rês, bem gorda,

Uma forma de pão caseiro,

Compotas de figo inteiro,

Canecas jorrando vinho;

E a lua, bem de mansinho,

Entrando pela janela

Quer mostrar também que ela

Quer ver o DEUS-pequeninho.

E se por ventura ouvirem

Um galope singular

Pela porta irão notar

Que uma tropilha reluz;

Um gauchito a conduz

Ao rancho grande do Pai

E o Redentor assim vai

Co'um chapeuzinho de luz.

Jorge Moraes - Livro: Acalantos

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 06/04/2010
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