ÉDIPO E JOCASTA

ÉDIPO E JOCASTA

À noite ele caminha pela casa.

O vento uiva lá fora.

Na meia obscuridade ele caminha entre os móveis,

Pássaro sem asa,

Atravessa o corredor e contempla as fotos,

O passado.

Ele está grávido de antepassados.

Ele entra no quarto iluminado pela tela do computador.

Na escuridão incompleta, ele busca a máquina de costura Alfa

Tornada altar: fotos dos avós, outras da mãe, o terço, e, debaixo dos óculos, a crônica de Rubem Alves:

“Vossos filhos são pássaros...” ‘sei o seu sofrimento. É o sofrimento de ver os filhos voarem e, no seu vôo, se esquecerem de nós...’

Era o desejo da mãe, ela pedia para ser lembrada com a leitura dessas letras.

Ao lado, uma máquina de moer carne, em desuso, toda envernizada.

Ganhei esta máquina de presente de casamento, ela é importada, da Suécia!

Chega de beliscar, menino! isto está cru, deixa eu preparar a massa do ‘nhoque’ em paz, desse jeito não rende!

Abro as gavetinhas da máquina de costura. Desde então, tudo intocado: agulhas, carretéis, dedais...

O grito da criança na madrugada:

Mãe, mãe, tenho dor de ouvido!

Olvido, olvido...

Casa movimentada, as freguesas, a mãe desenhando os moldes, alinhavando os tecidos, os vestidos, os acontecidos...

52 anos se passaram, passaredo, passarinho azul anuncia a aurora.

Vagar pela casa cortando a zona de transição entre as sombras e as luzes, passagens, sombras e luminosidades, e a casa à deriva das transformações, de estranhas metamorfoses. A casa, pouco a pouco, se reconfigura.

Uma semana antes da dor fatal, a mãe segue o filho até o portão.

Volta pra casa, filho!

Está tudo bem, mãe. Fique tranqüila e procure descansar.

A mãe se despede, então, com apenas um olhar.

1963, Mãe, é quase Natal! Eu quero um Autorama e um Posto Esso.

1965, A vitrola é presente do pai; o bolero, a mãe abraçada ao filho,

É simples, me segue, assim... são dois pra lá, dois pra cá. Agora uma valsa!

Mãe e filho bailando,

Édipo e Jocasta,

É ele voltando para o útero da mãe.

Amanhece.

O perfume da murta acaricia as narinas dele.

Sobre a mesa empoeirada do jardim, a verbena de coloração viva resplandece.

No jardim dos sonhos dele, a mãe mais uma vez se despede.

Um pássaro azul alça vôo.

Agora tudo é só, tudo é silêncio, tudo é pó.

Prof. Dr. Sílvio Medeiros

Campinas, é inverno de 2008.