Antologia Poética

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

Fundem-se no mesmo impasse.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

E dou a poucos uma esperança mínima.

Eu sou a infinitude do universo,

Bebo tudo,

Desfaço tudo,

Torno a criar, a esquecer-me:

Durmo agora, recomeço ontem.

E cada instante é diferente,

e cada homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra

O silêncio global da morte nos espera.

A doença não me intimide, que ela não possa

Chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,

Outra viaja, outra discute, uma última trabalha,

Sou todas as comunicações, como posso ser triste?

Não cantarei amores que não tenho,

E, quando tive, nunca celebrei.

Não cantarei o riso que não rira

E que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria é o nada.

É sempre no passado aquele orgasmo,

É sempre no presente aquele duplo,

É sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu amor à noite rompe.

Sempre dentro de mim meu inimigo.

E sempre no meu sempre a mesma ausência.

Os romeiros pedem com os olhos,

Pedem com a boca, pedem com as mãos.

Jesus já cansado de tanto pedido

Dorme sonhando com outra humanidade.

Minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,

E não tenho outro amor a não ser o dos doidos.

E cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles vivem senão em nós;

E por isso vivem tão pouco, tão intervalado, tão débil.

Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama

[Tempo.

Não serei o cantor de uma mulher, de ma história,

Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

A via presente.

Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

O medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

O medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

Cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

Cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,

Depois morreremos de medo

E sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Teus ombros suportam o mundo,

E ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

Provam apenas que a vida prossegue

E nem todos se libertaram ainda.

Chegou um tempo que a vida é uma ordem,

A vida apenas, sem mistificação.

Os médicos estão fazendo a autópsia

Dos desiludidos que se mataram.

Que grandes corações eles possuíam.

Vísceras imensas, tripas sentimentais

E um estômago cheio de poesia...

No céu também há uma hora melancólica.

Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.

_ Por que fiz o mundo? Deus se pergunta

E se responde: Não sei.

Os anjos olham-no com reprovação,

E plumas caem.

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor

Caem , são plumas.

O amor não nos explica nada. E nada basta,

Nada é de natureza assim tão casta

Que não macule ou perca sua essência

Ao contato furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício

De pesquisar a vida um vago indício

De dor e de solidão.

Por que morre o homem?

Campeia outra forma de existir sem vida?

Indaga outro homem:

Por que morte e homem andam de mãos dadas?

Tem medo de morte,

Mata-se, sem medo?

Ou o medo é que o mata?

Para que serve o homem?

Para estrumar flores,

Para tecer contos?

Para servir o homem?

Para criar um Deus?

Sabe Deus do homem?

Que milagre é o homem?

Que sonho, que sombra?

Mas existe de fato o homem?

Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo

Mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata.

Mas eu não quero ser senão eterno.

Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência

Ou nem isso.

E que eu desapareça e fique este chão varrido onde passou uma sombra,

E que não fique o chão nem fique a sombra

Mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no caos,

E entre oceanos de nada gere um ritmo.

A fuga do real,

Ainda mais longe a fuga do feérico,

Mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,

A fuga da fuga, o exílio sem água e palavra,

A perda voluntária de amor e de memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

E sob as ondas ritmadas,

E sob as nuvens e os ventos,

E sob as pontes e sob os túneis,

E sob as labaredas e sob os sarcasmos

E sob a gosma e sob o vômito

E sob o soluço, o cárcere, o esquecido,

E sob os espetáculos e sob a morte tão certa

Fica sempre um pouco de tudo.

No solo vira semente?

Vai tudo recomeçar?

É a falta ou ele que sente

O sonho do verbo amar?

O que se desatou de um só momento

Não cabe no infinito, e é fuga e vento.

Carlos Drummond de Andrade