Certa vez...

Certa vez, e já faz muito tempo
bem igual a uma história de fadas,
certa vez arrumei os meus trastes,
os meus livros, meu saldo no banco,
bem dobrei minhas roupas de festa,
e peguei minha mala surrada,
bem no fundo o meu maço de notas,
escondi meus colares de contas
e no dedo o anel de brilhante,
e no braço o relógio parado.
Certa vez, documentos no bolso
e nas bolsas, escondido, o cigarro,
certa vez, já faz muito, ah, se faz,
foi no tempo em que havia esperança,
tal e qual em uma história em quadrinhos,
era ainda manhã bem cedinho,
madrugada, eram seis da manhã,
fui de õnibus pra grande cidade,
fui pensando nunca mais voltar,
fui pensando, parei de pensar,
mais depressa do que tinha ido,
mais depressa já tinha voltado,
tal e qual um cachorro enganado
pela sombra da carne no rio,
um cachorro que volta perdido,
procurando a beira do fogão,
procurando o caminho esquecido,
encontrando o caminho deixado,
tal e qual um cachorro fiel,
nunca mais eu deixei meu lugar,
onde vivo tranquilo, espichado,
sou pachá, sou princesa, sou rei,
sou raínha, sou centro da vida,
tenho nada, sou tudo no mundo,
no meu canto,sou eu, mais ninguém.

(do livro inédito de poemas - Herança)