O SEGREDO DA FECHADURA
Arduíno chegou bêbado como a noite.
Teve vontade de abrir as sete trancas da porta
só para descobrir os segredos guardados da casa.
Cheio de perplexidade, cachaça e saudade,
lambeu as flores, sem gosto, no jardim
onde se escondiam duendes;
beijou na boca, sem alpiste, os colibris
eretos pelas asas; o novo Ícaro
jogou ao céu um barandão, sem gravidade,
para pescar discos-voadores.
Visivelmente faminto, absorto e drogado,
acendeu as luzes frias da mágica geladeira,
para comer o requeijão corroído pela meia-lua.
Cheio de inconsistência, pudim e realidade,
aguou um rio, suado, no leito das mãos
ressecadas por farelos de pão;
assassinou, à facadas, os travesseiros
pingados de sono; o neosuicida
afogou as mãos na pia, e, sem sonhos
abriu as janelas para acordar.
Arduíno vomitou pela casa inteira,
perdeu, na balança, peso e dignidade,
e fumou compulsivo até o final da noite
sem medo de fumaça ou câncer no pulmão.
Arduíno antecipou o choro ao velório,
sangrou, sem corte, de amor e saudade,
e apagou, imortal, como quem tarde chove
sem temor de covas, de escuros ou catalepsias.
Tropeçando na própria sombra,
Arduíno deu um nó no reflexo das luzes.
Ofendeu o amor, de ontem, que o fez abrir a casa,
deu a boca à tapa até babar carinhos pelos palavrões
sem graça, de cara no chão, dormiu na casa improvisada.
Arduíno, bêbado de tudo,
descobriu o segredo das chaves!...