Funeral marítimo

grito

um gosto salgado

nauseante

chega-me aos cantos da boca

alguém à bordo morreu

por um vento inconcebível

vago à deriva

jogado pelas correntes

possivelmente louco,

temeroso, mas ciente do meu destino

renego os nomes que carrego

e na ciência da vontade que me habita

agarro-me ao silêncio

o pouco dele que ainda me resta

o meu silêncio não é só

à hora de dizer, nada

a boca salgada e a voz calam

o coração das coisas não ditas

pulsa ainda, vivo, feliz

porque o realizado

tem o infortúnio de existir

somente se está morto

ao meu silêncio fazem companhia

as ditosas frases esperançosas

e mesmo as esperanças

felizes, livres de vir ao mundo

pois não há quem as julgue

ou rejeite

mais delas estariam vivas

se ninguém as proferisse

ou quisesse pôr fim às dores alheias

mas alguém à bordo morreu

não lhes acendo velas

nem lhes guardo a cabeceira

do leito derradeiro

não as limpo

nem as visto com uma mortalha digna

- mereciam, mas não o faço -

pobres defuntas

desperdiçadas

consola-me apenas

lançá-las ao mar

deixar que essa imensidão decida

que rumo tomarão

submergirão, esquecidas

ou consumidas pelas coisas inomináveis

que fazem com que tudo aquilo que cai no mar

torne-se, vivo ou morto,

também o mar

consola-me o mar

meu silêncio não está só

sei, pois carrega as pobres mortas

e o vento, outra vez, leva-me adiante