Trevas

Lívidos! Tem-me preocupado muito. Melancólica aparência!

Destes sertões que outrora, celeste visão se contemplava.

Na aurora alegre, quando o azul do céu leve e solto se estendia.

No cair da tarde, no altar das orações. Pai Nosso. Ave Maria.

Dos casebres, visão formosa, arvorejado. Figueiras gigantes!

Eco dos bem-te-vis fazendo festa em meio a grande floresta.

Flores de São João! Entrelaçadas na cerca espinhosa aramada

Luzia aos olhos do sol! Florescia o amor da virgem amada.

Vívida lembrança! Dos riachos que outrora se estendiam

A beira da porta, onde o gado saciava há sede todo instante.

Onde os répteis saudáveis entre as margens reproduziam-se

E as taboas cresciam meio ao brejo, entre o arrozal gigante.

Lívidos! Não são os mesmos turbantes! São opacos agora.

Em minhas lembranças, posso ver as andorinhas agrupadas.

O João de Barro construindo a morada e trancando a porta

O senhor Maneco feliz. Assoviando em meio as invernadas.

Sinto desejo do sabor do açúcar preto. Saco de açúcar!

Alvo guardanapo com que se cobria o pão, todos os dias.

Saco de açúcar! A camisa de João, vestido de Maria.

Avental da nona. Turbante tingido enrolado sobre a nuca

Clarão da noite! Cheiro de alecrim, luz da lua meiga e bela.

Estrada longa e estreita, pés descalços sobre a fria areia.

Caminhava! Caminhava! Povo remido, bem feliz cantarolava.

Arroz, peixe e feijão. Água da mina, amor divino, lua cheia.

Melancólica aparência! Meu corpo se esvai, sonolência.

Nem mesmo as preces chegam ao imenso céu nublado

Vejo a poluição esconder a beleza inefável do Criador

Parece que o grande céu azul termina perto do telhado.

Não ouço os animais. O riacho secou e um esgoto corre

Exalando mau cheiro, fazendo arder meus olhos acanhados.

Uma multidão que anda pra lá e pra cá. Movimento da vida

Lívidos! Esperando a morte que vem devagarzinho apanhá-los.

Quase surda! Mal posso ouvir o nome que deram as crianças

Não posso entender o caminho que espera estes pés inocente

Quase não tem ar, a água é contaminada e as vestes alérgicas.

O sol queima sem pena. Há um inferno que os espera a frente.

Século vinte um! Tem-me preocupado. Golpes fatais!

Velhos ensinamentos foram enterrados através do tempo

Nem mesmo meu dedo indicador consigo levantar agora

Amedronta-me o rumo incerto, destes pobres desatentos.

Surgem almas a procura do poder! Religiões, doutrinas.

Palavras levadas ao vento! Caídas em pleno esquecimento

Perde-se a esperança, fé, a coragem e o bom pensamento.

Transgride a lei honesta! Bendita, Santa e Justa! Lei Divina.

Há clamor na terra! Lívidos! Tem-me preocupado muito.

Ávidas mãos que dormem em silêncio! Traz-me sem tardar!

Uma folha com duas páginas abertas. Estamos em trevas!

Não há mais tempo! Para uma pausa, em meu olhar.

Lívidos! Quero descrever os lívidos! O verso não importa.

Sei que não há tempo para virar a página e contar a história

Não haverá tempo para disputar desta sorte. Estamos nas trevas!

Na disputa final. Para ver quem compra a própria morte.

“A quem pagará o homem a sua própria morte”

Branca Tirollo

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limaodoce
Enviado por limaodoce em 07/05/2006
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