O RIO DE MIM

Nasce dentro em mim,
Corre dentro em mim,
Deságua dentro em mim,
Um rio sem fim.
Um rio que tem a perspicácia
Do inocente nascer em mim;
Um rio que tem a inconstância
Do perene correr em mim;
Um rio que tem o elevado destino
Do inefável desaguar em mim.
Um rio que sabe contar histórias
De quando espírito incipiente,
De quando corpo vibrante,
De quando alma candente;
Um rio de toda a conformação
Fluida de meu ser continente.
Um rio que brota canoro
Dos interstícios entre células e sonhos
E de cujo fato não se faz registro;
Um rio que também nasce
De ravinas em vívidas tormentas.
Um rio que corre fremente
Pelos engenhos de todos os amplexos
A que me submeto, – que gozo! –
Ora soberano, ora servente;
Um rio que deságua ingente
Por todos, sem exceção, todos,
Os meus cometimentos de glórias
E minhas fraquezas presumidas
E minhas indagações de horas lúcidas
E meus encontros com dúvidas maiores
E apóstrofes a divindades reinantes
E minhas concepções de uma tosca,
Mas rútila, realidade subliminar.
Um rio que sabe sabores e aromas
E que também sabe desde ao travento
E ao picante e ao edulcorado.
Um rio que, se não sabe, sabe saber
E provocar em meus centros ígneos
O refrigério da inquietação maior.
Um rio que, se não de todo criativo,
Pois eu não sou excelso,
Pode permitir-me meramente amoroso;
Um rio que, se não assim tamanho,
Pois eu não sou sublime,
Pode permitir-me meramente imaginoso.
Um rio que sabe torvelinhos;
Um rio que sabe meandros.
Um rio que pode retrocessos
E sobe cascatas e cachoeiras
E torna e torna e torna, eterno.
Um rio que conhece vórtices
Que deságuam em nada,
Penetrando nos intrincados de um ser
Peregrino, transumano, deserto
Com anseios de oásis na lonjura
Insurreta de um inexorável devir.
Um rio com ciência de seus ancestrais;
Um rio que guarda lembranças
Das naus que o desvendaram
E de todos os viventes
Que, nele, mitigaram a sede.
Um rio sempre Amazonas,
Correndo para nascente. (1)
Um rio com memória de Lete; (2)
Um rio subitamente sideral,
Correndo para Marte;
Um rio azul marinho,
Correndo para mar. (3)


Notas:
1) Por razões de nossa topografia brasileira, todos os nossos rios deságuam no Atlântico, ou seja, caminham para o Leste (com exceções, como o Tietê, que corre para noroeste e desagua no rio Paraná,  mas que, enfim, chega ao Atlântico,  nunca ao Pacífico), o ponto cardeal onde o sol nasce, então dito Nascente. Todos os nossos rios correm para o lado Nascente (do Sol), mas seria contraditório imaginar um rio que corresse para a SUA nascente.
2) Lete, um dos cinco rios do Inferno, segundo a mitologia grega, que os mortos eram obrigados a transpor; ao fazê-lo, tinham que beber de sua água, o que lhes daria um total esquecimento de toda a vida pregressa. É um trocadilho para "delete", termo inglês incorporado em nossa Informática, que faz deletar ou apagar algo.
3) Atente para os trocadilhos nos versos finais: "para Marte = para amar-te" e "para mar = para amar". Eu adoro trocadilhos.