Olhos mofados

Nesses dias pelo infortúnio do saudosismo, meu coração tem andado mais ferido do que de costume. Assim como aquele gosto, que espero que alguém possa fazer referência, esta cada vez mais ardido em minha boca. Lembro-me quando descobri-me como alguém inexistente. Não que tenha ficado feliz por isso, eu apenas me lembrei disso em meio "as coisas boas". Nem tenho certeza se saudosismo havia mesmo de ser álbum de recortes coloridos. Sempre me fascinei pelo branco e cinza, tão monótono, do qual florescem as mais belas flores já deflagradas pela ponta de uma caneta tinteiro movida a cigarros e a muito álcool.

Por sorte, aqueles dias na clinica serviram de alguma coisa. Hoje podia orgulhar-se de "andar na linha" como sua adorável tia mal amada lhe dizia. "Minha filha, ande na linha, não faça isso com sua mãe". Ou como minhas queridíssimas irmãs quase em coro todas as noites me atormentavam "Pense bem no que faz, se papai não agüentar a culpa é sua". Ou ainda minha sogra, ou melhor ex-sogra, que me ligou, assim que pude receber ligações dizendo "Bem espero que você entenda e se afaste de meu filho... é o melhor para ele". Inacreditavelmente a luz cansada de meus olhos pede para que eu me deite e tudo acabe. A pobrezinha já o faz há muito. Mas esqueço-a até que ela grita tão alto em baixo do chuveiro, que olho encantada para a navalha que Carlos esqueceu aqui na última terça.

Faço o melhor para todos, embora em meus deliciosos sonhos, planejo e realizo todos os assassinatos em série que sempre quis fazer, ousando pelo menos nesse ambiente em que ainda posso ser algo que queira, ser algo com o que me ludibrio em meio as “deliciosas reuniões de família” e que desejo desde tenra idade. Aqui sou uma serial killer, uma mulher brasileira, de trinta e poucos anos, que mata e deixa rastros numéricos para a polícia incapaz de encontrá-la. Em verdade sempre desejei colocar o Brasil na história, como usurpador e não usurpado.

Sento em frente ao computador e tento de olhos mofados pela dor, deixar a alma pulsar junto com o sangue, tão anêmico. O estomago tão sedento por comida, é ignorado ao som de Elis Regina, chorando em seus eternos romances, em um som crescente dentro de mim, podendo escutar apenas uma frase, em milhares de repetições e explosões intermitentes dentro disso que chamamos cérebro.

Nunca consegui ter aquela memória em flashbacks, que as pessoas tem na tv, e como na maioria das vezes que sentava só, na varanda, enrolada em uma manta velha, manjada de café, chorei de cabeça vazia, justamente pelo vazio daquelas tão intermináveis madrugadas, do vazio da parte esquerda do guarda-roupa, do álbum de fotos, da geladeira, estranhos e íntimos. E não pela dor já sentida, quiçá por suas conseqüências, mas isso geralmente me cansa. Com a cabeça vazia, penso mil coisas, e nada é capaz de me reconfortar, e então choro. Encantada pela navalha que está no banheiro.