tornei-me deus

dos deuses

eu queria ver

o sangue, o grito,

o choro

e, acima de tudo,

a raiva no peito

pelo desaforo

de sobreviver.

queria vê-los

no ônibus lotado,

entre suor, o tempo,

e a impaciência

do atraso.

dos deuses

eu queria ver

a bebedeira insaciada.

garrafas

secas na mesa,

o vinho vinhando

a madrugada,

pra quando amanhecer,

não ter dinheiro

para pagá-la.

queria vê-los

febriando dengo

ou na cama

se retorcendo

com cirrose hepática,

ou numa dor de cabeça

tomando um remédio

esperando fazer efeito

ou

simplesmente

não aumentá-la.

queria vê-los

saudadiando a amada,

maldizendo

a distância,

comprando passagem

e pegando a estrada.

dos deuses

eu queria ver

a idade avançada,

o andar fraco

e vacilante,

com'o suporte da bengala

e por fim a morte

essa deusa indeusejada.

e, como deus,

queria vê-los, somente,

sem fazer mais nada.

André Espínola
Enviado por André Espínola em 23/10/2009
Código do texto: T1882824
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