tornei-me deus
dos deuses
eu queria ver
o sangue, o grito,
o choro
e, acima de tudo,
a raiva no peito
pelo desaforo
de sobreviver.
queria vê-los
no ônibus lotado,
entre suor, o tempo,
e a impaciência
do atraso.
dos deuses
eu queria ver
a bebedeira insaciada.
garrafas
secas na mesa,
o vinho vinhando
a madrugada,
pra quando amanhecer,
não ter dinheiro
para pagá-la.
queria vê-los
febriando dengo
ou na cama
se retorcendo
com cirrose hepática,
ou numa dor de cabeça
tomando um remédio
esperando fazer efeito
ou
simplesmente
não aumentá-la.
queria vê-los
saudadiando a amada,
maldizendo
a distância,
comprando passagem
e pegando a estrada.
dos deuses
eu queria ver
a idade avançada,
o andar fraco
e vacilante,
com'o suporte da bengala
e por fim a morte
essa deusa indeusejada.
e, como deus,
queria vê-los, somente,
sem fazer mais nada.