Meu eu morreu
Alguns desapercebidos passam por mim e tentam qualificar quem eu sou, outros pouco menos ao depararem com minha presença quantificam minhas qualidades, apontam minhas falhas e desmisericordiosamente fazem de minha passagem um circo, uma exposição, um evento...
Para esses, para os outros e tantos além eu digo:
Aquele que você vê e qualifica não sou eu,
Meu nariz não me pertence, foi esculpido por um cirúrgião. Foi quebrado em três pedaços, reajustado, lixado com uma lixa similar a que se usa para lixar paredes. Foi redesenhado, projetado para que pareça ser o que não naturalmente o é. É plástica.
Meu percentual ínfimo de gordura, que hoje beira os sete por cento não me é inato, ocorre devido à intensa ingesta protéica e embora forçosa me mantém assim, esguio. Abstenho-me embora com pena, sem carboidratos.
Meus retos abdominais não nasceram assim, hipertrofiados. Duzentos e cinquenta vezes por dia antes do banho de sessões impiedosas de grunhidos e suor os mantiveram assim. Não é natural.
Você olha para fora e vê o céu nublado, é inverno, mas quando olha para mim vê uma cor dourada. Minha pele é queimada não de sol, passo duas vezes por semana em um caixão revestido de lâmpadas azuis que emitem ondas de raios sintéticos. Minha cor não é minha.
Quando alguém passa as mãos em meus cabelos se iludem com sua leveza, com a maciez. Para esses eu digo, essa maciez não é minha. O formol tornou meus cabelos assim; uma vez ao mês passo por sessões terríveis de tratamento capilar. Formol, amônia e muitos elementos químicos concentrados são necessários para manter minhas madeixas maleáveis. Meu cabelo ao natural, você não conhece. Esse cabelo que tenho não é meu.
Portanto não críticas, julgamentos e afins. Quem eles julgam não sou eu, não pertence a mim. Por que em verdade, eu já não existo há muito tempo.
Meu eu morreu.