Reconciliação

"Hoje eu saio na noite vazia, numa boemia sem razão de ser, na rotina dos bares, que apesar dos pesares, me trazem você..."

(Toquinho / Vinícius de Moraes / Hermano Silva)

eu gosto da cidade quando se apaga...

quando é só silêncio...

quando seu asfalto se balança e se recolhe, acobertado pelo céu...

eu gosto da cidade

eu gosto da cidade quando só resta o amor

nas esquinas

nos mendigos

nos cigarros

nos cachorros

nos restaurantes que se fecham

nas senhoras tristes que (fingem) não querem mais companhia

- quando o poder não manda em mais nada

quando tudo é tão escuro e aconchegante

- só resta o amor,

por eliminação, eu gosto da cidade.

eu gosto da cidade quando dorme muito cansada.

o cuspe secou. o plástico está queimado.

os pneus já arderam seu ardor

a bebida já cessou seu efeito

as drogas são infinitas mas inúteis

as árvores dormem sem mais cantar

e as cigarras

e franceses, e ingleses, japoneses, italianos, africanos

estão recolhidos

vidros, vidros

preto.

e eu gosto da cidade assim.

o som pode ser visto...

por eliminação

eu gosto da cidade

sanfona eterna da quietude...

solidão bonita, e triste

- e triste -

mas tão linda alaranjada levemente...

pois uma cidade só é uma cidade quando é parte de nós

o mais cosmopolita que seja

o mais distante que seja

o mais concreta que seja

uma cidade é parte de nós

e eu gosto da cidade

(sinto hoje que ela também

gosta de mim).

e seus postes,

e seus pios,

e seus anjos,

suas prostitutas,

suas luzes sinceras

me abraçam e me embalam

num sono calmo... despreocupado...

eu gosto da cidade

(e sinto hoje que ela também

gosta de mim).