O POETA-CRISTÃO
No início era o verso, e o verso estava em tudo,
e tudo era o verso. Todas as coisas foram compostas
por ele, e nada do que foi feito
(os homens, as mulheres,
ladrões, putas, bêbados),
foi feito sem ele. E havia um homem
que andava pelas ruas perdido,
desesperado e ansioso,
e esse homem foi atravessado pela inspiração,
e o verso se fez carne,
e habitou entre nós.
Fruto da gestação mais
conturbada da sétima filha
do sétimo irmão das
setenta e sete virgens doidivanas,
nasceu o poeta-cristão.
Apenas mais um homem,
de carne, ossos e
consistência frágil,
famélico, raquítico,
ridículo.
Ao poeta-cristão se revelou
em toda sua glória
a inspiradíssima trindade:
a letra, a palavra e o verso.
E o verso lhe despertou
o desejo pela transcendência.
Transcendeu o poema, o papel, o livro,
libertando-se da carne carcomida
desaparecendo em pleno ar
levado por uma leve brisa
no ritmo duma voz poética.
Pois a poesia não é simplesmente o texto,
estático, regido pela gramática ,
concebido às escondidas, lido em silêncio,
ela é o canto, a voz. Para ser poeta
é necessário antes da escrita
possuir uma voz poética.
Mas o poeta-cristão também acredita na carne,
faz sexo todos os domingos
enquanto as velhas renitentes comungam na missa das oito.
O poeta-cristão é devoto de Maria Bueno
e de todas as demais santas de cemitério,
juntamente das demais devotas
entoa uma mesma ladainha
clamando por sua intercessão
e o perdão de seus pecados:
Santos Andrade...............................................rogai por nós
Visconde de Guarapuava................................rogai por nós
13 de maio.......................................................rogai por nós
Todos os hoteizinhos baratos..........................rogai por nós
Presidente Faria...............................................rogai por nós
Terminal Guadalupe.........................................rogai por nós
Passeio Público................................................rogai por nós
Todas as praças do centro...............................rogai por nós
Generoso Marques...........................................rogai por nós
Barão do Rio Branco.........................................rogai por nós
Todas as casas de massagem..........................rogai por nós
Alfredo Buffren...................................................rogai por nós
Carlos Cavalcanti.............................................. rogai por nós
Das realizações pessoais e fantásticas:
O poeta-cristão é audacioso, ambicioso,
arrogante.
Depois de tanto tempo
não ambiciona mais ter profissão: já foi astronauta, escafandrista,
homem-bala, vendedor de cachorro-quente,
atualmente
é apenas mais um desempregado.
O poeta-cristão vive de pequenos biscates
e da ajuda de suas musas levianas,
vende sua alma todos os dias
em pequenas prestações.
O poeta-cristão tem um milhão de amigos,
aos quais pede um milhão de dólares
pra pegar um táxi de volta pra casa.
O poeta-cristão ceia todas as noites
acompanhado por um anjo chamado Malaquias
uma mulher metade pássaro
e um pobre diabo que sempre traz o vinho.
O poeta-cristão ganhou de presente
de um astrônomo
uma luneta pra descobrir os novos planetas
do sistema solar,
as suas mil e uma personalidades
e as incontáveis utilidades dos corpos celestiais.
O poeta-cristão escreveu a maior obra lírica desde Camões
mas antevendo a má recepção por parte dos críticos
arquivou seus rascunhos e manuscritos nada originais
na Arca da Desesperança.
O poeta-cristão enfrenta diariamente
de peito aberto, cabelos soltos e desgrenhados,
o dragão do infortúnio
protegido apenas pela armadura
forjada por um ferreiro leproso,
armado apenas com uma lança enferrujada.
Após mais uma dura batalha,
deita em sua cama e toma um antiácido
pra curar essa nostalgia que insiste em queimar,
para a dor lancinante sua própria lança
fura o peito e extirpa
toda fonte do leve mal estar.
Das tentações no deserto:
Vagou em jejum por 40 minutos e 40 segundos
pelo calçadão da XV,
se perdeu entre as ramas,
colheu flores,
dormiu num oásis,
inocentemente, de frente para as grandes corporações,
C&A e LTDA.
escorregou pelos escombros dos botecos,
se deteve nas ruínas das bibliotecas seculares
que em suas estantes
guardam toda sabedoria
dos pergaminhos apócrifos,
os relatos das aventuras eróticas e suicidas
dos santos e mártires.
Mas eis que um dia
de repente, não mais que de repente
avistou quatro fantasmas
que passeiam livremente
pelo tempo e espaço, conhecem do passado,
riem do presente e desprezam o futuro. Eles se apresentaram
e o desafiaram.
Primeiramente a musa:
- Se és mesmo poeta, e já foste tocado pelo amor,
honra em teus versos meu nome e minha memória,
e te farei provar de todos os prazeres da carne.
O poeta-cristão responde:
- A poesia é maior do que eu ou você,
os amores passarão, posto que a carne é efêmera,
mas a poesia permanecerá, para embalar novos amantes.
Em seguida a fome:
- Se és mesmo poeta, vende tua obra
para superar a pobreza,
conquista fama, mulheres, dinheiro.
O poeta-cristão responde:
- A poesia é maior que eu ou você,
não pertence a quem a escreve,
o poeta se aliena no leitor,
e é desonesto fazer fortuna com o que não nos pertence.
Então a peste:
- Esta terra é seca, pedregosa,
se és mesmo poeta faz essa terra ser lembrada
através de teus versos.
Mas o poeta-cristão responde:
- A poesia é maior que eu ou você,
sua lavra é diária, e a lida da terra também o é,
apenas mãos e versos juntos podem tirar leite de pedras.
Por último a guerra:
- Se você és mesmo o verso encarnado,
justifica com tuas palavras meu atos,
e te darei um terço de tudo que conquistar.
E o poeta-cristão responde:
- A poesia é maior que eu ou você,
o verso é vida, e você só traz a morte em teu atos,
mas quem compor versos, ainda que morto viverá.
Das revelações, pregações e desventuras:
O poeta-cristão não passa por debaixo da escada
evita cruzar com gato-preto
e olha para os dois lados antes de atravessar a rua.
O poeta-cristão é penitente,
não escreve em dia santo.
O poeta-cristão pratica
a miséria material,
vende seus versículos heréticos
em frente aos palácios
em troca de cigarros soltos,
um prato de comida, uma cama pra dormir.
O poeta-cristão tropeça por entre os paralelepípedos
numa pedra solta, e a luz dos postes o cega,
às escuras profere um sermão
aos operários, pedintes, passantes,
funcionários públicos:
Bem-aventurados os viciados em jogos de azar, porque alcançarão a fortuna apenas no reino dos céus.
Bem-aventurados os injustiçados, pois serão vingados.
Bem-aventurados os cínicos, porque iniciarão uma nova mitologia.
Bem-aventuradas as mães solteiras, pois seus filhos lhes trarão esperança.
Bem-aventurados os libertinos, porque atingirão o orgasmo.
Bem-aventurados os covardes, pois viverão para provar sua coragem no dia da revolução.
Bem-aventurados os desabrigados, porque encontrarão abrigo no reino dos céus.
Bem-aventurados os amargurados em virtude de um grande amor, pois suas histórias serão romanceadas.
Devido sua insolência,
o poeta-cristão é levado
aos cafetões e letrados
no maior de todos os bordéis,
e é condenado a morrer na cruz
para redimir
nossa falta de inspiração e mediocridade.
O poeta-cristão é abandonado
por seus amigos. Eles fundam
seus próprios fanzines, jornais,
revistas literárias.
O poeta-cristão fala com
as paredes da cela:
- Pai, afasta de mim este cálice!
Mas apenas seu colega de cela o ouve,
e lhe oferece um gole de cachaça amarga.
O poeta-cristão anseia apenas
que a existência de Deus
não seja mais uma dentre as inúmeras
chantagens de seus credores.