SELEÇÃO POÉTICA - 1

1. Quatro mãos.

Sinto as cores mais macias,

as dores mais tardias,

as idéias mais vadias.

Sinto os pés mais vigorosos,

os desejos mais teimosos,

os medos mais formigados.

Sinto os dias mais longos,

as noites mais fraternas,

os botes mais precisos,

os atalhos mais acertados.

Sinto o cheiro do futuro imantando tudo,

Sinto o gosto da conquista arrematando o sonho,

sinto o fardo da família emplumando cada vez mais.

Sinto que, cada vez mais, valeu a pena chegarmos até aqui,

sinto que, cada vez mais, valeu a pena a escolha feita,

sinto que, cada vez mais, valeu a pena a estrada percorrida,

com o nosso grande objetivo conquistado a quatro mãos.

5/FEV/07

2. Reluzindo.

Hoje acordei mais vivo,

Como se o mundo coubesse numa flor,

Como se o mundo fosse uma flor,

Como se o mundo se bastasse numa flor.

Hoje acordei mais avarandado,

Como se pudesse segurar o universo na ponta dos dedos.

E os medos estivessem banidos pra sempre de mim.

Para nunca mais olhar para trás,

Para nunca mais olhar para trás.

Hoje acordei bem mais moleque,

Rugindo, reluzindo, semeando pra todos os lados.

Só vendo cores, aromas e carinhos em tudo e todos,

Em tudo e todos. Em tudo e todos.

Hoje acordei mais aprumado,

Saltitando sobre portas fechadas e bocas caladas,

Salpicando meu suor nas faces rosadas da fé,

Atracando meu veleiro nos portos benditos da paixão,

Nos portos benditos da paixão.

Hoje acordei mais compartilhado,

Abraçando filhos que não fiz e nem conheço,

Afastando espinhos que surrupiavam minha alma

e deportavam meus sonhos.

Como se tudo fosse só o meu tudo e nada mais,

Como se tudo fosse só o meu tudo e nada mais.

20FEV08

3. Jangada.

Teus olhos são dentes de samurai,

Que embaralham meus braços, que esmigalham meus laços,

Que desarmam meus golpes mais moleques.

Teus olhos são comportas inundadas de fogo e luz,

Falam tudo sem dizer, domam o mundo com a saliva dos céus,

Entendem tudo com a sabedoria dos fetos e dos feitos.

Teus olhos são vulcões que destronam as geleiras,

Ermitões bêbados, entorpecidos, esquecidos,

Cardumes atônitos por um teco de ar,

Cardumes atônitos por um teco de ar.

Certo dia quis tentar me apoderar do que eles viam,

Quis tentar entrar neles sem pedir licença,

Sem bater continência.

E fui fundo nessa retina tão avessa, tão travessa, tão menina,

Fui fundo nessa dança de loucos, de poucos, de roucos,

Fui fundo nesse útero, arrancando cada vértebra com os dentes,

Com os dentes.

Então descobri que dentro deles não havia cais,

Também não tinham rebarbas, feridas ou atalhos,

Também não tinham farelos, remelas nem restos de paixão.

Dentro deles o amor estava retorcido como fera acuada,

Jangada que o mar arrebatou, fecundou e devolveu,

Gigante em que cabia tudo na sua mão,

Varanda que o tempo esculpiu, acalentou e nunca mais morreu.

Nunca mais morreu, nunca mais morreu.

22FEV08

4. Fronhas ocas.

Fui buscar você onde nem queria,

Nem sabia, nem devia, nem me via.

Nas frestas, nas festas, nas testas de alguém.

Nos soluços, nos engasgos, nos rasgos dos céus.

Cada vez que chegava perto, mas longe te sentia,

Gritava, abria meu peito, explodia meus gritos

Mulher.

Fui buscar você onde não podia,

Nas mesas de bar que nunca pousei,

Nas bocas tantas que nunca beijei,

Nas fronhas ocas que nem sei,

Que nem sei.

Mulher.

Fui de porto em porto, de mão em mão,

Você passava por mim feito zumbi, feito zumbi

Você passava por mim feito fruta já madura, caindo do pé,

Você passava por mim feito mofo que nem o tempo quer,

Nem o tempo quer.

Mulher.

De tanto buscar você acabei me perdendo de mim,

De tanto buscar você acabei me soltando de mim,

De tanto buscar você acabei me brotando de mim, enfim.

E assim

E só assim,

Me encontrei em mim.

E assim, só assim,

Me encontrei em ti.

Mulher.

23FEV08

5. Rédeas.

Quantas vezes, sabe lá quantas,

Não sabemos pra onde ir,

Nem tampouco com quem ir,

Ou, por vezes, por que ir.

Olhamos pros lados, só portas, fechadas

Olhamos pros caminhos, só atalhos enferrujados

Olhamos pros sonhos, pros alvos, cadê?

Viramos baratas tontas, bêbados de razão, solitários do mundo,

Órfãos das decisões, das palavras, dos sentidos.

Quem já viveu, qualquer vida que seja, conhece esse chão,

Já comeu desse prato, já vestiu essa luva, já navegou nessa dor.

Tudo se traduz em silêncio, tudo se reflete sem cor, gosto, sem passo à frente,

Nos cremos cada vez mais mudos, ocos, rasos, fracos, secos,

Jogados no lixo do mundo como restos de um banquete que não vingou.

Então a voz começa a parir ecos, o breu vai trocando seu manto por novos sabores.

Aquilo que não tinha jeito começa a dar sinais de vida, de revide, de amparo.

Os atônitos cegos já não reinam tanto assim,

As dúvidas que eram todas, passam a ser migalhas de pó,

Meras fagulhas de gelo que nada mais têm a dizer ou fecundar.

Paisagens de muro vão descortinando seus véus com calma,

O vento se encarrega de levar o que ficou, o que resistiu de partir de vez,

O que resistiu de sorrir de vez.

Então acordamos daquele porre infernal e vemos que o caminho estava lá.

Por teimar em não ver, nos blindamos com rédeas infinitas,

Por teimar em não crer, nos brindamos com fel, arpões e colos farpados

Por teimar em não ter, nos armamos de muralhas com as pedras do mundo,

Por teimar em não ser, choramos sós sem rumo, prumo, sumo num desafinado Carnaval.

Por teimar em não ser, choramos sós sem rumo, prumo, sumo num desafinado vendaval.

23FEV08

6. Cair no mundo.

Tenho tanta coisa pra te dizer, pra te ver, pra te ter,

Mostrar minhas caras, minhas amarras, meus porões, portões,

Abrir minhas comportas, minhas compotas, meus senões,

Contar tudo o que sei e o que não sei,

O que sei e o que não sei.

Tanta coisa pra caminhar juntos, abraçar juntos, afagar juntos,

Atalhos que teremos que descobrir rasgando as nossas mãos,

Vozes que iremos traduzir mesclando os nossos vãos.

Tanta coisa para conquistar, revistar, extirpar,

Tanta coisa para descamar, navegar, obturar,

Tanta coisa para esquecer, entender, renascer,

Tanta coisa para amparar, atracar, decantar.

As palavras ficam órfãs, os gestos se mostram roucos, poucos,

Nada mais é preciso, nada mais é recluso,

Nossas regras caem no chão numa gargalhada infernal,

Nossa paixão ergue sua espada gritando a vitória afinal.

Tanta coisa para conquistar, revistar, extirpar,

Tanta coisa para descamar, navegar, obturar,

Tanta coisa para esquecer, entender, renascer,

Tanta coisa para amparar, atracar, decantar.

Quero conhecer mais suas entranhas, suas manhas, artimanhas,

Quero conhecer mais suas armas, sarnas, atalhos,

Quero conhecer mais suas dores, cores, sabores,

Quero conhecer mais suas marcas, estacas, amores.

Então, num belo dia, vocês vão cair no mundo, acreditem.

Vão olhar pra trás e acenar pra esse velho arrebite,

E eu, na varanda que a vida me destinar,

estarei desfalcado do meu coração.

Porque ele estará batendo junto com o de vocês

pra todo o sempre.

Pra todo o sempre, amém.

Pros meus filhos, 25FEV

7. Voltas do mundo.

As voltas que o mundo dá,

São tantas, são santas,

Sacode o avesso, desnuda o senso,

Descama o certo, destrona o feito.

As voltas que o mundo dá,

Que a gente nem sente, nem pressente,

Acontece na curva do sonho,

Acontece num gole qualquer,

Acontece num aperto de mão,

Num pedaço de pão,

Numa melodia qualquer.

Tantas voltas que o mundo dá,

Quem diria, quem podia,

Como se Alguém que nem conhecemos bem,

Nos visse de onde o mistério se esconde,

E trouxesse o destino como a gente queria.

E quem teimasse em resistir

Fosse atirado pra nunca mais,

Pra nunca mais.

Essas voltas que o mundo dá,

Depois de tantos suores inundando os músculos,

Depois de tantos tombos, rombos, cabeçadas,

Tantos assombros, tantas enganos, idéias ciganadas,

Tantas noites em que o sono nem perto passou.

Que voltas que o mundo dá,

De repente vemos que é possível ser feliz,

Que é legítimo querer o que se quis,

Que é nosso o que a vida assim diz.

Que é nosso o que a vida assim diz.

26FEV08

8. A dor que dói mais.

Dor, que dor dói mais?

Será que é quando a tarde cai e estamos sem ninguém,

Será que é quando a verdade vai e só a mentira vem,

Será que é quando o chão vira água, vira fumaça,

Será que é quando a mão que afaga nos afoga?

Dor, que dor dói mais?

Será que é quando o canto do pássaro só desafina,

Será que é quando a voz se cala, fica rala, vira cortina,

Será que é quando o tempo não pára e nem dispara,

Será que é quando o frio se traduz em tudo e nunca se vai?

Dor, que dor dói mais?

Será que é quando a pele vira rugas, vira mofo,

Será que é quando o amor vira saudade, vira estorvo,

Será que é quando o filho que tivemos já não temos mais,

Será que é quando o caminho da frente se funde com o de trás?

Dor, que dor dói mais?

Será que é quando tudo em volta vira farpa, vira erva daninha,

Será que é quando viramos baratas-tontas, só ladainhas,

Será que é quando esquecemos o tempero, o cheiro, as papinhas,

Será que é quando apagamos as cores dos olhos, dos lábios e do coração?

A dor que dói mais não corrói o nosso peito, nem repousa no nosso leito,

Não mora em ninguém, nem nunca vai morar.

Nem nunca vai morar.

É aquela coisa que fingimos que deixamos longe, bem longe,

Feito monge que nunca saiu do mosteiro,

Feito paisagem escondendo o bicho rasteiro,

Feito algo que parece que não vale nada,

Que não incomoda, nem se acomoda.

A dor que dói mais é aquela que não conhecemos,

Por isso só tememos,

Por isso nunca vai parar de pulsar, de cravar suas garras,

De apertar cada vez mais suas amarras,

De vigorar cada vez mais suas senzalas.

Feito sombra, feito monstro que não sabemos de onde vem,

E que cada vez fica maior, fica pior, fica pior por certo,

Fica cada vez mais perto, mais perto.

E vai minar cada vez mais as raízes da nossa paixão,

As matrizes da nossa paixão,

Vai empestear cada vez mais as nossas fantasias, suores e rimas,

Vai destrilhar cada vez mais a nossa alma, com toda calma, sim

Nos deixando pra sempre atracados nas teias dessas ilusão, por fim

9. Sim e sim.

Quero te agradecer pelos meus dias,

Por abrir as portas do seu cantinho,

Por me deixar estancar suas feridas,

Por ser exatamente tudo o que eu mais queria.

Obrigado, mulher, por ser meu norte, meu lado mais forte,

Por me permitir respirar o ar que sai da sua boca,

Por mostrar pra mim que querer não é uma coisa louca,

Por provar pra mim que vencer não é uma voz rouca.

Obrigado, por apontar onde brota a água,

Por ligar minha luz quando tudo vira breu,

Por doar seu ombro quando tudo deixa de ser meu,

Por doar seu sonho quando tudo vira um adeus.

Obrigado, linda, por ter caído na minha vida feito anjo,

Por colocar o meu destino nas linhas da sua mão,

Por ter feito do seu olhar o guia dos meus passos,

Por permitir amarrar o meu peito nos seus braços.

Obrigado, sim, por tudo que tem feito brotar de mim,

Por ter germinado as minhas sementes mais fortes,

E que hoje nos enchem de alegria, de energia, de fé,

A razão maior de estarmos aqui, sim e sim.

Obrigado por me fazer entender o que vale a pena,

Por dividir comigo a sua mesa.

Deus estava muito feliz quando pousou em mim a sua alma,

E essa é a única coisa no mundo que tenho certeza.

Pra mim mulher, Quézia, 29FEV08

10. Néctar fatal.

Gosto, oh, como gosto,

Deixar os seus nervos pelando como gata no cio,

Castrar seus passos, minguar seus sonhos,

Fazer você se encharcar de tanto suar frio.

De tanto suar frio.

Gosto, oh, como gosto,

Mostrar pra você caminhos que não levam a nada,

Conduzir você de olhos vendados para o bote afinal,

Enganar suas defesas com a minha alma lavada,

Fazer você se afogar no meu néctar fatal.

No meu néctar fatal.

Gosto, oh, como gosto,

De atravessar mundos para acabar com a sua raça,

Armar uma teia pra arrasar o seu coração.

Flagrar o seu golpe mesmo que venha de sopetão,

Pra transformar você na mais deliciosa caça.

Na mais deliciosa caça.

Gosto, oh, como gosto,

No final dos tempos virar as regras da razão.

Descobrir que sempre uma saída poderá ter vez,

Até que um dia o seu rei vai beijar meu chão,

A vida vira mais vida nesse jogo de xadrez.

5MAR08

11. Cadê Maria.

Procurando Maria dobrei esquinas, encantei meninas,

Fui cavar onde o frio se esconde, onde o mar responde,

Raspei o tacho da saudade, tirei os véus da idade,

Pra não ver Maria nunca mais.

Procurando Maria voltei aos prantos de menino,

Descosturei minhas feridas, minhas bocas perdidas,

Coloquei de volta todas as minhas feras paridas,

Pra não ter Maria nunca mais.

Procurando Maria entornei meus suores, imagine,

Traduzi os poemas que ninguém quer nem ouvir,

Rasguei minhas peles, minhas taras, minhas amarras,

Pra não ser Maria nunca mais.

Procurando Maria descobri um porão sem fim,

E dentro dele acabei me encontrando assim,

Como se a Maria que toda vida teimava em achar,

Era a mesma Maria que sempre viveu dentro de mim.