MIRANTES

Hoje acordei mais cedo entre as luzes do mirante,

Por vagos muros, fortaleza da alma efêmera, misteriosa;

Fui ao rio para beber água, ao descer de leve a ponte elevada

As cordas romperam-se, então pude ver o quanto incompleto fui.

A manhã se desfez antes do amanhecer, nuvens cobriram-te amada vida.

A noite, entre sonhos e cantares esquálidos, incandescentes, vaguei

Não vi nada que me pendesse a animar a alma sofrida e torturada,

Os anos esqueceram de acalantar-me, nem lembrança;

Os outros passaram como passei posteriormente a ponte e o mirante

Rostos animados pelo fulgor da vida, clarividente olhos dos outros.

Seres passantes em mim, refinados nos traços fisionômicos,

Todos outros como eu em mim, absorvidos pela idéia de ser apenas um,

Mas eram todos diferentes, heterônimos, vagando na memória do sonho,

Algum deles poeta ou santo padre. O judeu na sinagoga prega a Torá

Sabe ele que o trem já vai partir para além da vida, fico a espreitar,

Na janela da casa olho a rua onde a carruagem passa em direção ao rio

Os mortos carregam mortos, eu vivo a dor, é minha, uma que não passa,

Fecho os olhos por um instante, mas, incerto é o sonho, um clarão,

A luz cega-me a visão do que poderia ser o infinito limiar de Deus

Um desejo de encontrar a ponte, a porta do quarto, ela entreaberta,

Deus comigo. Entre tantos seres vejo-o a conduzir-me com sua lança

Onde visto a única armadura que me cabe e cobre meu corpo,

As armaduras de uma fé inconcebível a qualquer um deles, meus outros.

Então ele me deixa por um momento sozinho, penso eu,

E atravesso a ponte para meu despertar, estou entre todos, reunidos.

Em um compendio literário, alguém me empresta a pena, uma folha,

No branco rabisco uns versos, poema perdido na imensidão do sonho,

Ausentei-me por um momento para a fragilidade da vida, vi que a noite

Era em mim tão profunda quanto a dor que senti ao pari estes versos

Uma confissão de todos os devaneios que agora procuro remexer,

Esta gaveta entreaberta se expõe ao mundo, uma gota de vergonha

Eu, do mirante observo quem lê minha vida traçada nas entrelinhas,

A ponte entre todos os personagens ruiu, mais há ainda aquela fresta

Uma passagem secreta que teimo em esconder, do mirante observo

Meu mundo ruir e ser reconstruído por todos em mim. O mirante.