Chuva Miúda.

A chuva fria e quase silenciosa molhava pouco a pouco cada fresta da janela que servia de vitrine para a rua e de espelho para a alma.

As folhas silenciosamente gritavam o murmúrio do vento, que se debatia e recocheteava entre galhos e frutos.

A noite estava ainda no início, ou quem sabe já não era madrugada...

... por vezes medir o tempo insone é tão difícil quanto traduzir em palavras o silêncio da alvorada talvez próxima, mas escusa, com receio de chegar.

De companheira a taça, de consolo o vinho que de tinto e suave, embalava a noite e preparava o corpo para o descanso.

De solidão, a lembrança.

Saudade requentada...

De lembrança a saudade do que já viveu e não se lembra ou que nunca viverá e se antecipa na exaustiva expectativa.

De certeza, só dúvidas.

De medo: a vida.

E se a chuva miúda cessar, o sol amanhecer e o vento silenciar?

Ora, quem irá fazer as vezes de companheira nas noites sem sono, sem sonhos e sem paz?

Já sei, a prece. Mas a alma embargada pelo vinho e pela dolorida solidão está torporosa, quase em coma.

Como orar? O que pedir em prece em momentos de total abandono de alma e de esperança, em ausência de sonhos que venham apagar a angústia de acordar sem ter adormecido, em pleno pesadelo de abandono?

Pesadelo que não se vai/ esvai ao sentar na cama e abrir bem os olhos. Pelo contrário ele cresce/ aparece/ apavora.

A música pode ser boa idéia. Acalanto.

Encanto/ enquanto/ tanto/ tonto...

... sei lá.

Escuto ao longe o badalar solitário de um relógio, de um cuco trabalhador e honesto, que não aproveita a noite para descansar. Mas que me faz pensar que enfim, é noite quase dia/ ou ainda é dia quase noite, que diferença fará?

Mas enquanto vejo as gotas de chuva, vou regando minha alma inquieta, indócil, insone, porém incansável/ incalculável/ insondável.

Vou irrigando minha essência com doses de saudade, solidão e claro esperança de que nascendo o sol no horizonte então dourado de tamanho brilho alaranjado, o sono chegue e eu possa me entregar finalmente aos amados braços de Morfeu.

Sem rastros/ sem mastro/ lastro/ rumo ou obrigação.

E dormir/ sonhar/ sofrer/ morrer/ renascer/ me refazer, para outra vez, na próxima chuva miúda me reinventar, nascer ao avesso de mim mesma em mais uma noite de vinho, chuva miúda e nenhuma explicação.

Márcia Barcelos.

Márcia Barcelos
Enviado por Márcia Barcelos em 26/05/2010
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