CINÉREA

Para Manoel de Barros

Certo é que o tempo da vida

Resume-se, com tristeza

O quão hábil foi seu erro

E pelo que mais, com profunda estranheza

Vou lhes contar que primeiro a gente erra o que foi marcado

Depois se engana com as pessoas em sua volta

Esquece-se das passividades

Vai viver sozinho

— Sei de muita verdade e sei de meu próprio caminho

Enganou-se da vida,

Pois não se descobre nada e se descobre a verdade

Pois sendo valente nada podia esperar

Escolheu um carro e empurrou as malas para dentro dele

Deu uma última olhada no cigarro

Ele não possuía direção e desenganado fez-se vítima da contradição

Ou de seus pais, da contra-argumentação (que também é coisa da dissertação).

Ficara tarde demais,

O menino repousou o carrinho de brinquedo numa cadeira

E por suas duas mãos tomou a mamadeira

E se deitou num sonho que não tinha há muito tempo.

Há sempre uma palavra que me antecipa, esta é tempo.

Nenhuma palavra tem poder para te esconder com cuidado

E com todo cuidado pense agora numa palavra.

...

Quando se tenta encerrar algo e não consegue

É porque existe algo que te prende, o teu avesso.

Sou tão presente que não faço questão de me abrir

E tenho de usar de muita força, às vezes, para poder te sorrir.

Haverá um dia em que as salas estarão vazias,

A comida de todos terá o mesmo sabor,

E o homem não precisará dividir mais nada,

Ofereceremos uns aos outros intrinsecamente a mesma palidez.

Estarei em algum lugar,

D’onde outros já se partiram

Pois não preciso de fim para poder chegar (acredito que todos nós).

***

in "Uma Ordem Natural das Coisas" - pág. 70

Leonardo Martins Nietzsche
Enviado por Leonardo Martins Nietzsche em 03/09/2006
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