CINÉREA
Para Manoel de Barros
Certo é que o tempo da vida
Resume-se, com tristeza
O quão hábil foi seu erro
E pelo que mais, com profunda estranheza
Vou lhes contar que primeiro a gente erra o que foi marcado
Depois se engana com as pessoas em sua volta
Esquece-se das passividades
Vai viver sozinho
— Sei de muita verdade e sei de meu próprio caminho
Enganou-se da vida,
Pois não se descobre nada e se descobre a verdade
Pois sendo valente nada podia esperar
Escolheu um carro e empurrou as malas para dentro dele
Deu uma última olhada no cigarro
Ele não possuía direção e desenganado fez-se vítima da contradição
Ou de seus pais, da contra-argumentação (que também é coisa da dissertação).
Ficara tarde demais,
O menino repousou o carrinho de brinquedo numa cadeira
E por suas duas mãos tomou a mamadeira
E se deitou num sonho que não tinha há muito tempo.
Há sempre uma palavra que me antecipa, esta é tempo.
Nenhuma palavra tem poder para te esconder com cuidado
E com todo cuidado pense agora numa palavra.
...
Quando se tenta encerrar algo e não consegue
É porque existe algo que te prende, o teu avesso.
Sou tão presente que não faço questão de me abrir
E tenho de usar de muita força, às vezes, para poder te sorrir.
Haverá um dia em que as salas estarão vazias,
A comida de todos terá o mesmo sabor,
E o homem não precisará dividir mais nada,
Ofereceremos uns aos outros intrinsecamente a mesma palidez.
Estarei em algum lugar,
D’onde outros já se partiram
Pois não preciso de fim para poder chegar (acredito que todos nós).
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in "Uma Ordem Natural das Coisas" - pág. 70