AS VÍSCERAS DA VIDA

À memória de Augusto dos Anjos

As moscas circundam

A luz amarela-meningite

Como as baratas sobrevoam

Os pensamentos pútridos da serpente.

As entranhas da grávida estão pretas,

Os gestos do padre, imundos.

O jantar, damas e cavalheiros:

Merda à moda com pústulas amanhecidas.

Digestão em andamento,

Bílis, desejos ao vento,

Confio meu amor próprio

A bigatos bígamos.

Devolvem-me apressados,

Está gangrenado,

Com a data de validade vencida!

No formol o mergulho,

Como se em julho,

Ao adubarmos a terra,

Florescessem margaridas.

Meu coração,

Enferrujado pelo mofo do olhar alheio,

Cospe fel às artérias do mundo.

Meu cérebro,

Destronado pelo baço,

De braços dados com a oração escarrada,

Assiste passivamente

À vida sangrando pelas juntas.

Autopsiando o passado,

Vislumbro meu futuro:

Sentir-me-ei humano

Até que os vermes se aconcheguem na minha carne,

Beijando diariamente a boca necrosada da esperança.