Construção cabralina

A JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Quis escrever-te como

mão alheia que te pinta;

Sem ser meu no entanto,

mas cópia feita em vida

Quis desenhar-te casa

na qual se habita

sob teto de encomenda

tal palavra assim escrita

Fazer da geometria alheia

o metro que não possuo

As medidas inconcebidas

insonhadas num futuro

que tal desenho hodierno,

se faz olhando as coisas

não sentindo-as, vendo-as

traz à mente imagens moças.

II

Esse desenho inconstruto

não é algo que digo meu,

faço-o, tal qual decalque

duma lira muda de Orpheu

Estéril de intelecto altivo

das emoções palpitadas,

são apenas pulso hipnótico

duma imagem comparada...

Tal pulso a pulsar, o pulso

destas formas cerebrais

dá-me a ver o meu carma:

Aquilo que em mim há...

Não sou tão áurea, poeta

por isso tento te construir

n'algo que me projeto

a mim mesma a seguir...

Uma escrita construta,

mas tão alheia e árdua

que só me resta entender

o metro de tua estátua