PARA O BIBE

Como se em gradativos acontecimentos

minh'alma se apartasse do meu corpo

e me deixasse em dolorida sístole:

murcho-me nesta neblina.

Vejo? Pergunto?

Onde

a gentileza das ingênuas auroras

no tempo antigo

em que o vento compunha valsas nos teus cabelos

meus cabelos cor de trigo

e a tepidez do sol banhava

teu corpo de criança

meu corpo solto?

Onde

o teu sorriso

meu sorriso naqueles dentes tortos?

Onde

a cabeça inocente caindo do travesseiro bordado

num tempo em que não tínhamos

nem tu nem eu

nós pelo rosto?

O tempo, flagelo triunfante, secou a vida.

Em que ponto desconhecido desta Via Láctea

repousam os vultos cansados dos teus mortos

mortos meus?

A pele mudou

as pálpebras escureceram

os capinzais livres cobriram-se de paredões

a inclemência das fábricas e dos escritórios

devorou a infância.

Mas ainda persiste o eco de valsas passadas

caindo

sobre flores empoeiradas

sobre árvores mirradas

sobre o riacho poluído

sobre meus olhos

que foram os olhos teus

olhos meus:

então retornas

para que me ajudes a enxergar as cores

e me auxilies a não acreditar neste sabor de extrema-unção

em que tudo mergulhou.

Rubens Faria Gonçalves
Enviado por Rubens Faria Gonçalves em 29/09/2006
Código do texto: T252116