Quando o dia escapuliu do seu útero.

Acordo e toco minha alma sem pressa,

como se ouvisse que o dia escapuliu do seu útero,

como se fosse tocado pelas ancas fugidas de uma deusa qualquer

me mandando seguir meus próprios rastros.

Levanto da cama meio monge, meio traficante, meio cabra-cega.

Percebo que meus braços e pernas ainda não retornaram de sua debandada noturna,

me assusto e vejo que a minha boca está ainda tatuada na face de outro alguém que pouco sei. Cadê?

Procuro pelo meus olhos e percebo que há muito não os tenho mais em mim. Certamente nunca os tive de fato.

Vou atrás da minha fonte dos cheiros e gostos, quando entendo que nunca pude me embalar em aromas ou entorpecer pelo picante, pelo doce, pelo gosto qualquer.

Também meus ouvidos se fizeram distantes desde sempre, desde antes de ser semente, desde antes de virar desejo.

Começo, por certo, tatear a mim mesmo na busca atônita de algo que pudesse dar algum sentido para acordar. Nada encontro.

O vazio é o único e galopante véu que tenho em volta de mim.

Isso não faz sentido, parece troça do destino, parece amarras de um pesadelo que vão mostrando seus tendões de forma cruel, soltando um riso bruxulento.

Vou atrás do meu coração, talvez o único algoz desta surrada cena, talvez dele pudesse arrancar alguma luz, algum atalho, seja o que for.

Ele então, com a voracidade de um abutre escarniçando sua caça, explicou a que se deve tal infortúnio.

- "Pouco sabemos da gente. Pouco entendemos do que nos ensinaram. O que temos não existe de fato. Tudo é um redemoinho que nunca se finda em si próprio. Todas as coisas são pétalas ungidas pelas lâminas afiadas da ilusão. Se você quer entender o que se passa, o único caminho é abdicar deste desejo mesquinho de querer trazer para si o sentido dos mares, pois isso só pertence aos mares".

Então fechei os meus olhos e voltei a dormir.

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