ROSAS DE AREIA

ROSAS DE AREIA I

É tua presença nas negras areias,

picotadas de azul, mornas de vento,

que transforma a ilusão de meu lamento

nessa teia sutil em que me enleias.

Só de te ver, a alma me incendeias;

contemplo de teus pés nascer portento,

rosas de mágoa crescendo num momento,

de estames e pistilos são tais teias.

E assim me quedo, o milagre contemplando,

dessa beleza que amo sem saber,

pétalas rubras da expressão mais gaia,

mais rubra a mente a tal prazer mirando,

de modo tal que só te posso agradecer

por tantas flores nascidas nessa praia...

ROSAS DE AREIA II

A praia é cinza, contra o lago azul,

envolta em permanentes pinheirais,

coníferas, carvalhos... No demais,

montes altivos no horizonte exul.

Mas é gélido este lago que me expul-

sou para quimeras primordiais.

Não há ninguém na praia do jamais,

minhas pegadas apagou o vento sul.

Assim eu pairo, onívoro fantasma,

insondáveis as rosas dessa areia.

Nada me resta, senão o mastigar

desses grãozinhos na língua, que me pasma

pela pirraça interior... que me incendeia,

nessa recusa, enfim, de me acordar...

ROSAS DE AREIA III

As rosas que me deste são farelos,

amarelados entre as folhas do passado;

estranho o verde nessas folhas conservado,

com botões rubros tornados amarelos.

Eu construí de areia esses castelos,

em que te via reinar, sobre o encantado

sonho de amor, apenas revelado

por cinzas fotos de teus traços belos.

Rosas de areia são o meu destino,

escorrem pelos dedos, ampulheta,

cacos de ideal desfeito em realidade.

No momento em que as colho, as assassino,

rosas do espinho da ilusão secreta,

em seus grãos translucentes de inverdade.

ROSAS DE AREIA IV

Eu beijo a castelã, feita de poeira,

em miríades de sonhos reluzentes,

agregados na estátua, entontescentes,

numa película de água derradeira.

Abraço a castelã, prenda ligeira,

que aguardo esfarinhar-se, transparentes

os beijos que lhe tomo de infrequentes,

deusa da terra, sombra alvissareira.

Porém resiste firme entre meus braços

e me transmite a inesperada peia:

sou eu que me transmuto na ardilosa

armadilha de amor de seus abraços...

Corpo arenoso, o pênis feito areia,

que se esfacela ao contato dessa rosa.

ROSAS DE AREIA V

Eu sou a multidão dos esquecidos,

que não deixa de si qualquer lembrança!

Sou velho, sou adulto, sou criança,

sou filho de imigrantes mal vestidos.

Sou o senhor dos engenhos construídos

com meu sangue que de jovem não se cansa.

Sou escravo africano, sem bonança,

eu sou a grávida de filhos mal nutridos.

Eu sou os ossos semi-carcomidos,

nos túmulos sem cruz dos cemitérios.

Sou o mendigo que dorme seminu

e sou a esmola dos gestos distraídos.

Sou padre e sou ateu aos despautérios

e não te iludas: que também sou tu!...

ROSAS DE AREIA VI

E não penses, ao me leres, ser melhor

ou de outro modo, apenas diferente:

se é de amor o teu sonho mais pungente,

nenhum dos pesadelos é pior

que aquilo já vivido em grau maior

por qualquer que viveu anteriormente.

Juntos somos sob a pele: toda a gente

se encolhe em melodia em tom menor.

Assobiam em ti teus ancestrais

e ressonam os que ainda não vieram:

todo o que vive e todo o que viveu.

Na areia de teus ossos naturais,

gotas de cálcio dos crânios que o tiveram.

E não te iludas, que também és eu!...

ROSAS DE AREIA VII

As rosas se desfazem entre os dedos

como os cacos de crianças nunca tidas;

como o senso comum, são incontidas

realidades isentas de segredos...

Pois tão somente a água nos faz ledos,

quando evapora, as almas ressequidas

quebram-se em chispas de maciez despidas,

só restando a polvadeira de seus medos.

És o timão e a gávea desse barco

que singra o teu deserto pela quilha,

no esforço inútil de desfraldar sua vela.

Somente fica a esteira, como um marco,

por entre as dunas, uma estéril ilha

e não te iludas, que também és ela!...

ROSAS DE AREIA VIII

E não te iludas que eu descreva a mim:

também teu sangue é invadido pela areia,

que aguarda de tocaia e vem, certeira,

abrir-te as veias em talho carmesim...

Mas não se faz fecunda, mesmo assim:

de teus castelos em pó desfaz-se a teia,

não adubas a terra, em derradeira

escarlate golfada e morte, alfim...

Porque a areia ficará sanguissedenta,

por mais que te absorva a substância

e de outras vidas partirá empós,

que jamais sua secura se contenta

totalmente, com memórias de tua infância.

Mas não te iludas, que a areia somos nós...

ROSAS DE AREIA IX

Meu barco navega em vítrea gaiola;

eu sou piloto e sou o timoneiro;

faço périplo do oceano em meu roteiro,

nessa garrafa que me desconsola.

Minha derrota só encontra a gola

desse gargalo arrolhado por inteiro;

viro o barco até o extremo derradeiro,

que paisagem transparente desenrola.

Mas vejo ser apenas o fundo da garrafa;

até o mar em que vogo é pura areia,

meu sol não passa de tubo fluorescente.

E por mais que me esforce nesta estafa,

singrando as ondas numa longa teia,

sou envolvido num engano incandescente.

ROSAS DE AREIA X

Pois são de areia as paredes de meu mundo,

que todo vidro é orgia em silicone,

o alumínio da luz que me abandone!

Não há mais noite enquanto singro o fundo

dessa garrafa de areia, o barco imundo

é somente cerâmica e abalone

e por mais que desse leme assim me adone,

permaneço sem achar o mar profundo.

E para o amor também, que tanto abafa,

são só beijos de areia que recebo

e assim me iludo de guiar o meu destino...

Porque esse amor está arrolhado na garrafa,

ninguém liberta o gênio e apenas bebo

rosas de areia em que delícias imagino.

ROSAS DE AREIA XI

É assim que eu me sinto. Uma redoma

de vidro ou plástico, quiçá de plexiglas,

me separa da vida e assim me faz

objeto somente de quem toma

a si a observação. Vedante e goma

impedem a passagem, mesmo gás

não entra ou sai. Talvez perfaz

a própria atmosfera que me doma.

Eu mesmo sou de areia, como a rosa

ou como o barco que voga sem destino,

porque há vidro só e areia a meu redor.

E embora seja a garrafa luminosa,

vai pelas trevas meu tanger de sino,

buscando um eco em vão, que grite: "amor!"

ROSAS DE AREIA XII

Ou, quem sabe, estou num prato de Petri,

sob a luz de um microscópio, refletor

de cada movimento, o meu senhor

que me move com pinças que nem vi.

Apenas ecos de suspiro ouvi,

atribulados pelo próprio ardor

dessa lâmpada halógena, fervor

de dissecar a vida que perdi.

Reduzida a provação bacteriana,

inspecionada para uma experiência,

enquanto a areia a meu redor é conservada,

como meio de cultura que se irmana,

única água o frescor de minha vivência,

até que a lâmina venha a ser lavada.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 23/02/2011
Código do texto: T2809507
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