LIBÉLULA I-XV
LIBÉLULA I (22 fev 2011)
Ele me encara com seu olhar imenso,
vermelho e amarelo, olho espanhol,
com duas estrias negras de farol,
pupilas brancas de fulgor intenso...
Vejo atrás o quiasma, mais infenso,
bem protegido contra a luz do sol,
guardado assim dos raios do arrebol,
parecendo perscrutar o quanto penso...
Ele repousa sobre a serrilhada folha,
uma das patas levantada em saudação,
cheia de espinhos para a própria proteção,
enquanto comunica-me sua escolha
e me declara, sem qualquer temor,
que me escolheu para seu interlocutor.
LIBÉLULA II
Ponho meus olhos nos olhos desse inseto:
as duas antenas se projetam entre os pelos,
meio arrepiados... até parece ter cabelos,
bigode e barba, em esplendor completo...
O corpo se projeta, bem discreto,
mais para trás e as quatro asas, selos
de sua condição, adeja com desvelos,
rapidamente e quase que em secreto...
Parece ter duas bocas, é verdade,
sem mostrar a presença de um nariz
e assim me encara, cheio de insistência.
Não há perigo em nossa sociedade:
não me fez mal, tampouco mal lhe fiz
e assim me encara, em seminal paciência.
LIBÉLULA III
E lhe pergunto: "O que queres de mim,
bela libélula, de tronco tão comprido,
de asas diáfanas, tens o meu ouvido,
podes contar-me o teu querer, assim..."
Contudo, eu faço troça e, outrossim,
não faço burla do inseto perquirido:
eu zombo de mim mesmo, de iludido,
por pensar que tal visita tenha um fim...
E rio de mim mesmo, o fantasioso,
que em tudo busca algum significado,
sabendo bem que nem um só existe!...
Que é apenas meu pensar imaginoso,
que em tudo vê quimera e dom alado
e que indagar de outra vida ainda persiste...
LIBÉLULA IV
Porém, ao perceber o meu sorriso,
abre-se a fenda que lhe conforma a boca
e o inseto me dirige sua voz rouca,
em um momento de se perder o siso!
"Não sejas pretensioso no teu riso
e nem coloques da imaginação a touca:
não sou alucinação, nem falha louca
de teus sentidos. A dimensão que piso
é a mesma tua, humana criatura!...
Teus ancestrais cantaram-me em suas lendas
e me atribuíram poderes surpreendentes!..."
E minha visão toldou-se, em tal tontura:
a sensação em que as veias, como fendas,
cortam o sangue das humanas mentes...
LIBÉLULA V
Aos poucos, respirei.... Voltou-me a fala.
O inseto continuava a me encarar,
pacientemente disposto a me esperar,
até que a ideia dentre a mente estala.
E ao ver que o serzinho assim se cala,
voltou-me a segurança de afirmar:
"Mas que tolo sou eu! Chego a pensar
que uma libélula, volátil como bala,
sua boca abriu-me para me falar!...
Pois se nem tem aparelho fonador
e o máximo que pode é cricrilar!...
E fico aqui, um velho sonhador,
em minha babaquice, a imaginar
que me traga alguma imagem de valor!"
LIBÉLULA VI
"De fato, és tolo," voltou-me a voz aguda,
"porque deveras me comuniquei,
mas não com a boca: ao cérebro falei..
Pouco importa que a voz me seja muda,
tenho essa habilidade, que me escuda.
E foi por isso que te procurei:
que me escute, raramente humano achei,
a maioria a mente traz desnuda..."
"Pois muito bem," falei, recuperado,
"Sempre é um prazer saber que tresloucado
eu não fiquei pelo ardor da fantasia...
Mas o que queres de mim, meu bom amigo?
Porque duvido, se me fosses inimigo,
que assim falasses com tanta bonomia..."
LIBÉLULA VII
"Em princípio de conversa, sou libélula,
mas não penses que sou fêmea, é o contrário:
será talvez bastante atrabiliário
que de mim penses como sendo "ela"!...
Sou um macho desta espécie, mesmo bela
sendo a minha aparência. É pouco vário
o aspecto deste ramo do insetário,
portanto, não erijas em estela
essa imagem de que eu seja a ninfa ou musa
que inspira teus poemas. Nem te peço
senão um pouco do tempo que coletas...
Eu li teus versos, sob a tola escusa
de "Almas Estupradas" e me apresso
a te pedir que compartilhes de minhas metas."
LIBÉLULA VIII
"Eu sou o antepassado das libélulas
que voam por aí, somente insetos;
mas eu não sou assim, pois em provectos
períodos do passado, das janelas
teus ancestrais contemplavam, nas costelas
batendo os corações, em desafetos...
Pensavam que eu nutrisse maus projetos
de devorar seus filhos, suas donzelas...
Porque, como me vês, já fui dragão!
Nesses tempos de antanho, já esquecidos,
heróis mandavam para me matar!...
No começo, mostrei-lhes compaixão,
mas ao ver os meus filhos malferidos,
eu comecei, feroz, a me vingar!..."
LIBÉLULA IX
"E bem depressa o gosto descobri
de provocar maior destruição
da que, para minha própria proteção,
eu precisava. E assim, desenvolvi
jatos de fogo, que em meu pulmão nutri,
com os quais eu provoquei desolação,
por léguas ao redor assolação
e toda a vida humana persegui..
Mas depois que minha caverna eu isolei,
o impulso de matar me acometeu
e como a gente toda já fugira,
maior destruição ainda espalhei,
as florestas eu queimei e se perdeu
toda a vida animal que persistira!"
LIBÉLULA X
"Flora e Fauna então entraram em conselho
com Ceres e Dionyso, que a Natureza
protegiam, com prazer e com presteza,
e lhes mostraram da região o negro espelho...
Decidiram aplicar-me assim um relho,
embora a morte, em toda a sua crueza,
nunca pedissem... com tal delicadeza
que a vida protegeu no mundo velho...
Pensaram logo em privar-me dos poderes
do voo e fogo, com que destruía,
mas Dionyso, então, obtemperou
que eu ficaria inerme e logo os seres
humanos, que eu dantes perseguia,
trucidariam de mim o que sobrou..."
LIBÉLULA XI
"Assim, a minha espécie morreria
e ficaria mais pobre a Natureza.
Ceres, a deusa que mais a vida preza,
propôs então, em sua sabedoria,
que em seres bem menores mudaria
a mim e à minha progênie e, com certeza,
nenhum homem, por maior a sua vileza,
estas moscas-dragão destruiria...
E foi o que ocorreu. Desde esse dia,
eu encolhi assim, violentamente,
e meus filhos comigo se encolheram...
Mas o fogo que da boca nos luzia
de nós já se esvaiu completamente
e do que éramos, os humanos já esqueceram."
LIBÉLULA XII
"Por isso vim a ti, para que a história,
tu que escutas a voz dos que morreram,
registres para aqueles que a perderam,
para que saibam de minha antiga glória.
Pois não me arrependi.. Queimei a escória
que me atacou primeiro. E já esqueceram!
Destruíram do mundo o que puderam
e como "reis da criação" cantam vitória!...
Mas não guardo rancor. A minha existência
foi longa e proveitosa e já meu vou,
mas fui enviado por Ceres e Dionyso,
para falar a essa tua gente, com potência,
que o conselho se reuniu e deliberou
fazer ao homem aquilo que é preciso!..."
LIBÉLULA XIII
E eu disse então: "Mas não te vás ainda!
O que queres dizer com tal sentença...?"
"Nada que fuja à compreensão de tua sapiência.
Dos teus irmãos a arrogância é infinda,
olha o que fazem com esta Terra linda!...
Vê se consegues uma maior audiência
e te dirige a ela com frequência:
que esta mensagem seja assim bem-vinda!
Que se disponham a cuidar mais do planeta,
sem massacrarem as outras criaturas,
que combatam a poluição que provocaram!
Eu vim a ti, nesta missão secreta,
para avisar, com as intenções mais puras,
antes que os deuses cumpram o que julgaram!..."
LIBÉLULA XIV
Então, eu lhe indaguei: "Qual o interesse
que tens em preservar a multidão
da humana gente, ó tu, mosca-dragão?
Por que te empenhas para que não cesse?"
Ante meus olhos, o serzinho até parece
começar a crescer... Ou é imaginação?
"Não entendes que estou sob maldição
e por séculos aos deuses faço prece?"
Sua cabeça igual a de um martelo
me parecia agora e o olhar mortal.
"Não, não esqueci, humano, o meu rancor,
mas os deuses, que claramente podem vê-lo,
para adiar o meu momento triunfal,
me transformaram em seu arauto e locutor!"
LIBÉLULA XV
"Fui obrigado a te trazer aviso!...
Mas eu sei que ninguém te escutará
e, muito em breve, se executará
a sentença, no momento mais preciso.
As libélulas crescerão, num improviso,
nosso poder, nosso fogo, voltará
e pela Terra cada um destruirá
o quanto construiu o humano siso!..."
E, tomado de pavor por tal mensagem,
eu fiz o mesmo que a todo o profeta
foi feito no passado por minha grei....
Em breve impulso, tomei-me de coragem,
joguei-me sobre a criatura infecta,
agarrei-o entre meus dedos... e o matei!
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com