MICÇÃO DIVINA & MAIS
MICÇÃO DIVINA
pois é de noite que os sonhos me visitam,
mas não durante o sono, que tão breve
é o tempo em que ressono, que o almocreve
das ilusões seus fardos não cogita(m)
sequer trazê-los; meus sonhos são concretos:
a musa senta a meu lado, onde já esteve;
o deus risonho traz, em canto leve,
fragmentos de horror, tão indiscretos
são os profetas de futuras mágoas;
minha mente povoam, sem tardanças,
esses fantasmas nus, essas crianças
revoltas de um passado impenitente.
E eu nado assim, me afogo nessas águas
que o fado urina em mim, indiferente.
DONS GRATUITOS
Existe algum motivo que os deuses adorados
Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?
Por que madura o óvulo no ventre de uma terna
Donzela adolescente, senão por consagrados
Ideais reprodutivos, que a deusa biologia
Um só espermatozóide escolhe preservar,
Enquanto a multidão condena a ressecar,
Por que somente um se funda e, em sintonia,
Produzam nova vida estuante de esperança?
Enquanto a mesma vida recamam de estertores
Esses deuses solertes, que nos atribularam
Com pragas e desditas, rigor que não descansa...
Os deuses são sagazes. Pois só nos dão as dores
Por que sejamos gratos, depois que nos passarem.
EVENTOS
É a condição humana, com certeza!...
Depois que chegas à idade do "com dor",
A vida ainda tem igual beleza,
As cores ainda trazem seu calor...
Mas esse nome muito bem descreve
As decadências da carne continuadas:
Pois a troco de cada prazer breve,
Recebes trinta dores demoradas...
Não é que seja a corrupção da idade:
Foi resultado de pura distração,
De tanto maquinar "poesidade",
Levei um tombo e quase quebro a mão;
E como a pôr à prova a própria fé,
Ao sair da farmácia... torço o pé!...
este deve ter sido inspirado pelo Aporelly, o famoso poeta burlesco Aparício Torelli.
PLANGER
Nós abusamos: ficamos muito unidos,
Nossa amizade deu muito na vista,
Num esplendor amargo de conquista,
Que os melindres alheios tem ferido...
Nós abusamos: falamos de magia
E se uma coisa há que não se aceita
É que feliz de amor seja a desfeita,
Sem que tragédia surja e sem poesia...
Nós abusamos: fomos dois meninos,
Inconscientes, cumprindo desatinos,
Num bimbalhar de sinos e ilusão...
Sem compreender que os sinos a rebate
Marcam o fim apenas do combate,
Mas nunca do amargor no coração.
ASSOVIO
Razão sutil existe de esperança,
mesmo que o amor perdure insatisfeito,
para quem ama, sempre é dom perfeito
gozar do amor, à espera da bonança...
Pois isto de possuir o corpo amado
pode trazer satisfação sensual,
pode abrandar a excitação sexual,
porém do sonho desfaz o bem sonhado...
Sonhar de amores é som de nostalgia,
viver de amores é idílio de poesia,
gozar de amores é apenas um momento:
Fiéis embora perdurem os amantes,
os sentimentos frágeis, rebrilhantes,
se desfarão num sibilar de vento...
MATRIMÔNIO
Retrato de sonhos perdidos na calma
Do plácido enlace e na satisfação
Da carne saciada que o sêmen embalma
Em vínculos simples de amor sem paixão.
Encanto sutil na doméstica bruma,
De modorra anéstesica em paz e conforto.
Manhoso veneno desfaz, uma a uma,
Intenções de embarcar e atracar noutro porto.
Coleira gentil, mas corrente de ferro,
Que em mão voluntária prendemos à gorja
E assim trucidamos dos sonhos a corja...
Que morre sem gritos, suspiros ou berro,
Esvai-se civil, num bafejo gelado
E o corpo se engorda em sepulcro dourado...
ESTIMA
Ah, quantas vezes passamos, transitórios,
uns pelos outros, barganhando amor:
deste-me o teu, terás igual valor
em juramentos e abraços persuasórios...
Numa emoção perfeita de desdita,
de pé atrás, sem ilusão fecunda:
nessa esperteza comercial, profunda,
no amor sincero nunca se acredita...
Moeda gasta e isenta de verdade,
pois somos todos espelhos de vaidade,
juntos trocamos gestos de ilusão...
E, num assomo, o coração me diz:
O amor dos outros é apenas um verniz;
Todos amamos é o próprio coração!...
POLISPERMIA
ao toque do pistilo, teus Estames
de almíscar na Corola protegidos
Deiscentes se abriram, revestidos
da alegre Cor dos Sonhos que mais ames...
e, nesse gesto de Opérculo encantado,
aberto assim teu régio Meristema,
em pura Pétala de Sonho, sem dilema,
desfaz-se a Antera em Pólen perfumado...
estranho efeito tendo em minha Vida:
esperava que de ti brotassem Flores,
mas meu foi o Canteiro mais semeado...
tu continuaste Meiga e Desvalida,
e eu me esqueci do Afã de meus amores,
brotando em Versos teu pólen fecundado...
PARÁCLITO [a Arthur C. Clarke]
Uma estrela explodiu há dois mil anos,
Humanos a deixar cheios de pasmo,
Pensando ser sinal de um grão portento,
Penosamente concedido pelos deuses,
Paraninfo de era imarcescível,
Para trazer-lhes paz, tranqüilidade,
Como se Deus fosse explodir estrelas,
Comemorando o bem da humanidade...
Assim, um homem sábio percebeu,
Assinalada fora a morte inglória,
Assassinado um sistema planetário;
Outrora vivas, em belas construções,
Outros sonhos nutrindo, multidões
Outorgada tiveram morte súbita.
RAZÕES
Apenas um gênio tais versos teria
De ardor e despeito e fragrância de encanto,
Com tanta freqüência e brutal agonia,
Composto casual em total desencanto...
Apenas um gênio tais versos de geada,
Cabelos grisalhos, visões de harmonia,
Suspiros de carne, desgostos de fada,
Retalhos de treva cantar saberia...
Apenas um gênio, ou antes, quem sabe?
Algum que já sofre tão mais que os demais
Que o próprio sofrer não se abranda jamais.
E apenas nos versos sua pena se acabe,
Apenas nos versos de ardor e de encanto
Que escreve quem ama e recama de pranto.
ENCANTADOR DE SERPENTES
alguém me disse que as gentes se recusam
a aceitar de seus rostos as mudanças:
preferem ver as falsas conservanças
que as fotos retocadas lhes conduzam,
tentando assim trocar, não mais a face
que permanece, porém trocar de espelho,
para não mais avistar o rosto velho,
por não quererem ver seu desenlace;
mas eu não sou assim, porque essa imagem
não me desacorçoa; e bem até
gosto de ver meu rosto, em plena fé
de que me espelha somente uma miragem:
meu rosto é só da alma um trapaceiro...
Sequer conheço meu rosto verdadeiro!
COMPOSTO
Pois quem diria que, passados anos,
O mau olhado forte seguiria,
Sempre esfazendo, em inversa teogonia,
Os laivos de esperança dos enganos...
Um ato peristáltico, os humanos,
Ideais e ilusões, a teologia
Da produção das fezes; a ironia
De sermos tão eficientes quanto insanos.
Somos máquinas copróferas, nada mais;
E ao percebermos que alguém produz magia,
Precisamos de esterco recobri-lo...
Nesse infalível denegrir, jamais
Deixando margem à pura nostalgia
De quem o mundo quis de amor cobri-lo.