Vidas

Ela

Ela abriu os olhos relutantes, temendo seu relógio ao lado

Sentou-se ainda sonolenta, calçou seus chinelos, caminhou até o banheiro e se olhou no espelho, não estava lá.

Seu sonho havia sido um pesadelo, lavou o rosto intensamente, insistentemente, escovou os dentes, mais ainda não estava lá.

Desceu as escadas de seu apartamento, cruzou seu visinho mais barulhento, acordou o porteiro sem lamento

Atravessou a rua, virou a esquina, entrou na lanchonete

Pediu um café bem preto, o garçom fez um comentário, um lamento, não sabia onde estava nem seu endereço, pediu uma pastilha, cigarro isqueiro, seu pesadelo.

Voltou a sua casa e sorriu com desprezo, entrou na cozinha e viu seu anel de casamento, não sabia no que acreditara, era seu tormento, foi direto a sala, ligou o som, sem sossego, revirou a estante e viu seu sangue violento, sabia que era tarde mais não queria seu desprezo, escreveu em seu caderno sonho seu desassossego, girava a cabeça como um sino, que sofrimento.

Ela foi até a sacada não queria ver os sorrisos dos detentos, nem as grades dos apartamentos, desviou o olhar e viu os lírios impregnado em sua pele, desatento.

As horas passavam como um filme sem suspeitos. E logo a lua brilhava soltando seu brilho mais intenso sentiu seu peito chorar mais seu grito ainda preso, ouviu um cristal a quebrar e em suas mãos o sangue ainda fresco.

Ela viu o outono chegar, e as primeiras folhas a cair em seu peito às violetas se apagarem, sabiam que era o fim e não o começo.

ELE

Ele olhou o relógio com desprezo, o sono ainda o dominava por inteiro

Levantou do sofá, viu sua mala posta, e lembrou-se da proposta, seguiu adiante nada importa

Foi à cozinha serviu-se de café, sentou na cadeira mais perto sua cabeça doía, ardia

Ouviu a porta se abrir seu amigo o olhou com tristeza, lembrou da chave ainda no pescoço, sorriu um sorriso desgostoso.

Caminhou atordoado, no bolso ainda o isqueiro, o desapego

Viu o porteiro, o aperto, subia as escadas desgastadas com o tempo, o olho ainda o condenava, desalento

Sentiu arder seu peito, tirou as chaves sem jeito e o apartamento ainda tinha seu cheiro que desespero na mesa o cigarro o cinzeiro.

Seguiu até a janela a violeta ainda bela. Na estante o cristal revoltou-se ardia ainda mais o peito que sofrimento.

A lagrima corria sobre seu rosto, e o grito o sufocando desatento a janela aperta e o vento frio das tardes de abril o congelando por inteiro, tirou o anel e o jogou na mesa, olhou tudo pela ultima vez, se desfez.

Sentiu que o sonho havia se desfeito e o seu pesadelo aceito.

Sobre outros olhos

Ele

Ele abriu os olhos relutantes, ardia e queimava

Sentia todo seu corpo imóvel, um desconforto

Viu flores, não sabia onde estava no fundo sabia onde estava, tentou levantar-se seu corpo ainda doía.

Quis colocar os pensamentos em ordem, latejava como sua cabeça latejava.

-Não faça esforço.

Ouviu uma voz amiga a dizer, nos teus olhos despeja conforto.

-Dr. Marcos.

Lentamente as lembranças voltavam à tona e com ela a dor infiltrando em seu peito.

Quis perguntar, mas só olhar já dizia tudo, tudo.

Os fechou, sua garganta fechou seu peito...

Ele saiu, sem rumo caminhou, não quis os lírios dos jardins, rejeitou o café o pão, saiu, no bolso ainda a chave.

Viu o apartamento, cruzou o porteiro, o lamento, subiu as escadas, desgastadas, à porta.

Relutando entrou, não queria estar lá.

Na mesa ainda o cigarro, isqueiro a xícara do café preto, seus olhos ardia.

Na sala o cheiro, o seu cheiro.

Ardia, ardia tudo ali ardia, doía.

Não suportou gritou, se jogou, a estante balançou e o cristal se quebrou.

O sangue fresco em sua mão fazia as lembranças irem e virem de sua mente, ainda o desejo ardente

Ele se olhou no espelho e viu as lagrima rolarem.

Ele não se viu, ele não sentiu.

Foi à cozinha a dor queimando, ardendo, a dor batendo, ainda latente.

Jogou o anel na mesa e chorou se quebrou.

Sentiu que o sonho acabou, e que seu pesadelo apenas começou.

Fumaça

O céu azul, e os olhos dela

Eram suas ultimas imagens

Tudo que lembrará tudo que viverá

Tudo apenas fumaça...

Nadando, flutuando.

Sentia que estava entre as nuvens

E a voz dela chamando, eram como arcanjos cantando

Queria também poder chamar, cantar, gritar seu nome

Mas sua voz presa, sua língua dura áspera...

Era inevitável.

Ela se mantinha curvada, sobre o corpo inerte,

O telefone em mãos e as lagrimas queimando-lhe a face

Os segundos eram minutos, e os minutos horas, horas estas intermináveis.

Segundos insuportáveis.

Ela sacudia a cabeça enquanto chamava seu nome

Na rua os carros parados, aos poucos mais pessoas se aglomeravam

Estava formado o circo!

Todos ali assistindo seu desespero, seu pesadelo

Sua vida se desfazendo diante dos seus olhos

Vendo o tormento de sua alma.

Barulhos estridentes a trouxeram de volta a realidade

Um rapaz forte a afastou do corpo pálido

Tudo a sua volta girava, seu rosto banhado e seu estomago embrulhado

-Eu vi tudo. –afirmou um jovem rapaz.

Foi tudo muito rápido, rápido como uma bala

Ela se despediu da garota, e ainda sorrindo se virou para atravessar

O barulho, o carro, o freio, o corpo no chão

Tudo tão rápido quanto à bala de um revolver.

O céu azul estava límpido, limpo, lindo

E seus olhos já marejados, eram impossíveis não se perder nos seus olhos castanhos.

O céu azul e os olhos dela. Era suas ultimas lembranças

Lembrança essa que ainda ardia o peito.

O barulho, o carro, o freio, seus olhos

Seu inebriante olhar castanho, depois a fumaça.

Ela andava vagaroso por entre as lapides,

Na sua mente ainda os olhos castanhos,

No seu peito ainda a dor

Passou pelo portão e deu mais uma olhada por cima do ombro

Sentiu a lagrima romper a face, enquanto murmurava o adeus.

Escritor

O cigarro no parapeito!

Queimava ele sozinho, e o escritor admirando a fumaça, vendo a brasa queimar mais um de seus moveis, imóvel.

Estava ali imóvel há horas pensando, admirando, sonhando, queimando.

Parado a frente de sua velha maquina de escrever lia suas ultimas palavra, parábola.

“O que é o cigarro se não um lento e doloroso suicídio.

Ora! Eis me aqui me matando aos poucos.

Rezando a morte, a cada tragada, a cada tossida.

Peço a ela que me leve, me carregue em seu peito.

Eis me aqui...

A frase não terminada, mas o corpo já morto, inerte a olhar a cigarro no parapeito

A brasa a queimar mais um lindo móvel

O texto na velha maquina.

O mundo girando, a alma sendo carregada.

Lá estava o escritor já morto, revendo seu texto.

Eis me aqui implorando para que ela me carregue

Pois alma já não tenho mais,

Só a casca dura.

As telas estão sem cor

Ele se admirava com telas que para mim não diziam nada

Sorria como uma criança, com as cores jogadas ao acaso

Era tudo uma brincadeira.

Sempre fora uma brincadeira.

Tudo ao redor girava

Tudo ao redor se desfazia

Ele enlaçava as nuvens e pintava meu rosto com carvão

E agora tudo se foi

As telas foram todas cobertas com tinta preta

E nada mais me restou

Ele me beijava e me dizia que um dia viveríamos num mundo igual

Os seus olhos marejados faziam com que eu acreditasse

Mas era tudo uma mentira

Fora tudo um sonho

Mas não quero acordar dele

Eu quero sonhar, sonhar mais uma vez

E fingir que estamos em um jardim sem veneno

Sonhar que o tenho mais uma vez em meus braços

Mas as telas estão sem cor

E os monstros de túnica rondam as ruas

Era tudo uma brincadeira!

Mais porque estou chorando?

As telas estão sem cor e os jardins não cheiram mais a rosas.

Jardins envenenados

Nas ruas esquinas pessoas andavam com o mesmo propósito.

Cantavam, dançavam, gritavam

Sorriam,choravam, amavam

Amor esse era o sentimento que transbordava

Eles pediam aclamavam

-Igualdade! Igualdade.

A palavra se repetia, repetia

Estavam cansados, mais a cada ano, era vital a passeata

A cada ano ela era mais aclamada

Eles não queriam entrar nas estatísticas

Não suportavam mais a crueldade.

Os jardins estavam cada vez mais envenenados

O choro cada vez mais aprisionado

E o amor cada vez mais escasso

Não mais existia a lei de Deus, onde o Amar é uma dádiva

Só há violência em seu santo nome

E monstros de túnicas

Gritando, espancando, xingando

-Aberrações.

Hoje só a dor

Só a jardins sendo envenenados.

**... Será que sou errado Por querer estar ao seu lado

Em jardins onde as flores não envenenam o ar.*

(Se essas paredes falassem. Dance of Days)

Overdose

A língua áspera, a garganta seca

Seus olhos avermelhados, as forças esvaindo seu corpo

O ar falhando, faltando, o pulmão... Não havia mais.

Sua voz presa, o coração disparado, parado.

A ânsia, o vomito, a comida que ele não comeu o sangue

O fim previsto, revisto, aceito, sentido.

Ele caminhava atento, o alento

Chorava calado, cantava os mares

Sentia sua pele rasgar e suas mãos ásperas passavam constantemente sobre o rosto, aflito

Ele gritava as escuras

Fingia a vida, fugia, corria preso ao desespero

Ele não existia nada a sua volta existia

Ele não mais cantava, não mais falava

Ele não mais vivia

Andava atento, seu caminho previsto, seu destino o risco

Ele guiava-se pelos becos imundos

Jogando a sorte, uma roleta russa

Ele caia mais não se levantava

Gritava mais ninguém o ouvia

Ele se julgava e se encolhia, desistia.

Hoje jogado nas esquinas, nas guias

Hoje a embolia.

A boca seca, a língua dormente

Ele sente o ar faltar-lhe, e o coração acelerar

Tudo se mistura e o fim visto Previsto e há muito aceito

Os gritos.

A luz acaba a luz se vai

Sua vida se esvai

Por segundos ela acaba.

Ferida

Ele mantinha os olhos fixos, nas mãos um pedaço amassado de papel

Sua cabeça girava, e a voz embargada pedia-lhe uma explicação

Deu poucos passos a frente e outro ainda imóvel mantinha os olhos baixos

Ele queria gritar, mas era inútil agora

A chuva caia fina sobre seu corpo e seus olhos marejados pediam a seu amado que ficasse

Ele desabou ao chão vendo a silueta do outro sumir ao meio da neblina

Na sua mente as últimas palavras dele

-Não posso mais. Adeus.

Para ele era o fim, o fim de uma vida.

O fim de um amor

E a ferida aberta nunca fecharia.

Aline Uga
Enviado por Aline Uga em 03/04/2011
Código do texto: T2886630