Outono

Para Concha Rousia de Galiza

Se pudesse eleger minha paisagem de coisas memoráveis, elegeria o casarão da quinta de minha infância perdida, localizada em longínqua aldeia, no outono de minha inocência imaculada, à hora crepuscular, com repique de sinos ao longe... Lá fora, o espetáculo do desnudamento quase sensual das árvores atestando a transitoriedade da vida; o desenrolar lento do novelo nas mãos da tia velha sentada na cadeira de balanço, na varanda, fazendo crochê, alheada da realidade, mergulhada na poeira incandescente de sua infância embalada por outros outonos rubros de alegria e de felicidade... Outrora...

Outrora eram sons de saudosos violinos, de graves violões, langor de mágico piano, doce melodia de flautas embalando meus sonhos na pasmaceira de ocasos que prenunciavam o acabamento de algo inda indefinido, mas sentido no âmago da memória ancestral de minha alma... Sonhos extravagantes cavalgando em disparada pelos campos, gerânios nas janelas abertas para o vale em ouro, árvores despidas de antigas mágoas, rio levando em sua correnteza as folhas mortas de todos os propósitos... Recordo isso, e minha alma se enche de uma ânsia esmaecida, de uma saudade brumosa como se fosse uma cortina disfarçando a véspera do acabamento de tudo...

Hoje sei que minha alma pressentia o cárcere mudo, a dor do desamparo do calabouço, quando assistia ao espetáculo do ocaso e invadia-me um desassossego indistinto que fazia transbordar a taça amarga de outras existências esquecidas no porão de ser... Eu não trazia meu coração partido, não sabia interpretar com clareza o turbilhão de emoções plúmbeas que se avolumavam e oprimiam meu coração com uma ânsia de náufrago em mar noturno, quando, ao longe, soava dolente a hora do entardecer...

Ah, meu Deus! Hoje são girassóis de tédio, velhas chagas abertas, réquiem do sol nas horas trêmulas do ocaso, palidez de rosas e lírios em jardins de esquecimento, velhas cartas amareladas pelo tempo, lembranças vãs de intentos malogrados; vento em atropelo no ar que alberga as folhas mortas que se desprendem atônitas, rubras de espanto ou amarelecidas como rosas esquecidas entre as páginas de um livro jogado no sótão da memória e que se deixam levar entorpecidas, ébrias, decaídas, entregues ao destino...

Ouço, vindo de muito longe, o som nostálgico dos sinos de minha infância perdida. Por certo dobram por meus desenganos, pela nostalgia que sinto ou pela assombrosa solidão de meus inúteis dias... Dobram, dobram por meu espanto perante esta hora vestida de púrpura em que não sei o que fazer de mim... Vem-me à memória a pipa que confeccionei com as cores de meus sonhos, que sonhei planando colorida e que jamais alçou voo na palidez azul, da tarde clara e sem fim, de um outubro rubro guardado na parede da memória, testemunho da fugacidade do tempo...

Outono... Fim de tarde... Tudo parece diluir-se num espetáculo de cores e sossego… Um vento brando toca as folhas mortas, bailarinas desnorteadas, que rodopiam num balé triste e sincronizado. Assisto a tudo impassível. Quisera, meu Deus, enxergar o outono com os olhos do menino que fui. Impossível. Trago a íris rodeada por uma bruma espessa, um mapa de fissuras profundas no rosto; nas costas, o peso do fardo de tantos fracassos, de inúmeros malogros, de muitíssimas desilusões recolhidas na monotonia noturna de sucessivos outonos... Hoje, meu coração é um vitral estilhaçado de uma catedral gótica, no alto de uma colina íngreme, inatingível...

Os pássaros cantam seus últimos acordes sonoros, agradecendo o dia que se dilui preguiçosamente num espetáculo de cores no mata-borrão do céu e acordam em mim alguma coisa adormecida no emaranhado da alma, desenham um mapa de pequenos rios, nascidos dos olhos da memória, águas que não puderam suavizar as inúmeras partículas de dor nascidas de fracassos acumulados, de travessias muito antigas por longínquas terras com um gosto de outros mares... O poder que se oculta por trás dessas imagens sugere uma estranha força e desperta em mim sentimentos inomináveis.

Quedo-me vencido, folha-morta numa alameda de árvores seculares. Ouço Chopin diante da lareira, carpindo as rosas murchas da saudade da criança dos vales que se esvaiu no tempo. Leio Fernando Pessoa, fumo ópio, embriago-me de absinto. Lá fora, o outono sempre o mesmo... Eu, meu Deus, tão outro!...

Oliveira