Criação
Criou-me para o mundo minha mãe
E para o inevitável momento da rosa:
Pedras, pétalas, gente, espinho...
Também criou-me minha mãe
Para a possibilidade das coisas
Se amarem pela madrugada.
Mostrou-me o caminho para o aroma indecifrável do café,
Ensinou-me o antigo idioma do carinho, do amor e do perdão.
A asma me pegou quando criança,
Mas nem por isso minha mãe decretou dias de dor
E nem tampouco os domingos deixaram de sair nas fotos.
Ensinou-me, minha mãe, para não me entregar para qualquer ouro,
Para qualquer riso.
Disse-me ela: “Meu filho, copule com a dúvida, venere a
desconfiança, ame-a,
semeie seus campos, coma de seus frutos, beba de seus
licores, hasteie
sua bandeira.”
Porém eu, rosto nu, mergulhei, insano, no mar dos mascarados,
acreditei na música dos amigos, no flerte das donzelas esguias e nas
procissões de fé
de bípedes fiéis...
E um dia veio a era da bomba,
E destruiu os cristais finíssimos.
Minha mãe criou-me para o mundo
E o mundo mostrou-me que a vida é dor, traição.
E o destino, esse bonde desgovernado, é como Cristo desvairado:
Falou a vida inteira sobre amor, mas acabou crucificado.