Uma carniça

("Une charogne", Charles Baudelaire)

Lembras da visão que tivemos, numa mortiça

Manhã de melancólico estio?

Na curva do caminho uma horrível carniça

Sobre o leito seco de um rio.

As pernas para o ar, como mulher lasciva

Entre fétidas transpirações

Ostentava de maneira lúbrica e aflitiva

O ventre prenhe de exalações.

Rebrilhava ao sol aquela indelicadeza

Como se a matura-la bem

Devolvendo centuplicada à Natureza

Aquilo que em si ela contém.

E o céu analisava a horrível carcaça

Como uma flor que se oferece...

Tão forte seu fedor na relva escassa

Que quase nos desfalece.

Zumbiam moscas sobre a podre barriga

Onde em bandos escuros e esguios

Vermes disputavam em uma viva intriga

Os restos reluzentes e frios.

E tudo ia e voltava, como negro vagalhão

Ou borbulhando transbordava...

Parecia haver do corpo a multiplicação

De tal modo tudo fervilhava.

E tudo recordava a melodia rotineira

Do vento e da água corrente

Ou de grãos que se agitam na peneira

Movendo-se metodicamente.

E tudo era já como alucinação imposta

Uma imagem que se nega

À tela branca que ao artista desgosta

E sua visão não entrega.

Uma cadela faminta nos olhava nervosa

Da pedreira não muito distante

Sonhando roubar à carniça malcheirosa

O seu bocado infamante.

E contudo tu serás igual àquele monturo

Tal qual aquele infecto horror

Luz dos meus olhos e do meu ser obscuro

Anjo meu, e meu amor.

Assim serás algum dia, diva graciosa

Quando por lágrimas banhada

Sob a grama e a vegetação luminosa

Fores pura podridão mofada.

Então diz, ó bela, aos vermes roedores

Que aos beijos te devorarão

Que guardei em essência teus amores

Na plenitude da decomposição.

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 07/04/2012
Reeditado em 09/06/2012
Código do texto: T3599916
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.