Um chamado João, de Carlos Drummond de Andrade (poema publicado no Correio da Manhã de 22 de novembro de 1967, três dias após a morte de João Guimarães Rosa)

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para forçar
o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
desligando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual com sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino,
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
do abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

Tinha parte com... (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
21. XI. 1967
 
Carlos Drummond de Andrade
Enviado por Germino da Terra em 16/05/2012
Reeditado em 16/05/2012
Código do texto: T3670566
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