O Ouriço Invisível

Arranjei uma fantasia de ouriço

Cheia de espinhos

Com focinho de besta

Vesti-me nesse disfarce

E saí à rua

O ouriço é um coitado

Dejeto da criação, fracasso da natureza

Feio e ouriçado

Rejeitado e arredio

Pois fere a mão de quem se arriscar a uma carícia

Sujo como um mendigo

Perigoso como um louco

Nocivo como um andarilho

Letal como um bandido

Por onde passei, semeei náusea

Chamei provocações

Conjurei chuvas de cusparadas sobre mim

Causei risos de escárnio e de piedade

Levei uma pedrada

E uma seta atravessada no pescoço

Afastei mãos feridas

Até que me enfiaram numa rede

E me prenderam com grilhões

Abateram-me a marretadas

Num calabouço fumarento

E depois me esfolaram

A golpes de facão

Mas quem quereria um couro tão ordinário e tão espinhoso?

Sobrou-me um pobre esqueleto descarnado

Magriço de dar dó

Enfermiço de causar pena

Irritadiço de dar nojo

Mesmo ser querer eu sorria

Meu sorriso de caveira

Sorrido de cáries e de tártaro

Saí por aí, solto de novo

Bêbado de esperança

Purificado...

Mas meus ossos eram amarelados

Onde já se viu falar em pureza

Na cor do fígado e da doença?

Faltava-me sangue, carne, tutano, miolos

E eu só tinha costelas e vértebras a oferecer

Só me restou palmilhar as ruas e praças

Falando sozinho

E brigando com minha sombra

Até que ela fosse embora

Cansada de mim

Até que um temporal me afogou

Depois de uma carreata alegre e barulhenta me atropelar

Não tenho rosto

Não tenho nome

Não deixo lembranças

Não participo do teatro da história

A luz não se ilumina sobre mim

E minha voz não faz barulho

Pergunto e não me respondem

Chamo e não me atendem

Agrido e sou ignorado

Agonizo e sou abandonado

Até o vento é mais importante

Pois ele sopra folhas e poeira

Derruba casas, tomba árvores, destrói prédios

Eu não destruo

A água é mais nobre

Pois ela cria suas larvas

Ela lava as manchas

Ela revigora os cansados

Ela perfuma a matéria

E eu nada faço

Eu não sou essas palavras

Eu não sou nada

Eu sou (?) um não-ser

De modo que não mereço um mundo

E o mundo não precisa de mim