CREDO
CREDO
A madrugada abre sua boceta pentagramada
sobre os telhados das casas.
Em meu recinto, embebedo-me de dor.
O calor das noites ruins bebe toda a água
do corpo:saio às ruas repleto de versos,
sem uma sequer palavra de conforto.
Lacinantes agulhadas emparedam-me.
Mastigo nódoas de sangue coagulado
no meio da rua, no vai-e-vem dos táxis.
Na grande maravilhosa cidade,
plena de logias e matemática,
ardo por uma palavra de solidariedade,
uma emoção barata, emoção que seja.
Os cálculos desvendaram-me todos os segredos,
as palavras deturparam o medo.
Na capital dos mendigos, não durmo,
nego ao gerente o prazer de ver-me lá, amanhã cedo.
Com uma faca nas tripas
enveredo por transversais tristes sem métrica ou rima.
Belas poesias livres.
A anarquia invade minha ilha.
A amargura aguarda à saída.
Desconjunto-me nas ruas.
A lua, alucinada, bate ruas e vielas
à cata de mim, perdido em poemas
a vagar, sob a aura dos infelizes.
Quem dera ignorar...
Compreendo. Entendo tudo que se passa,
Cada volta e ainda decifro códigos nas faces.
Como se pisasse na terra,
deslizo os pés sem alarde.
Manadas sem solução pastam até tarde,
antes porém do sol.
Com as palmas e juntas embrutecidas
retiro deus do limbo das mentiras.
Guardo-o nos cestos nas ancas da mula
e bato-lhe no lombo:eiááááá!
Disparada pelas ruas onde caminho repleto
e a lua desespera-se à minha cata.
Piso minha terra.
Terra que não merece sangue por ela,
nada por ela.
A terra dos homens, pátria confusa.
Um halo mostra-me a extensão do meu pa¡s:
sou uma nação ambulante
em convulsões e insonia deprimentes.
Redentoras Aves-Maria salvam vidas
estalam aqui e acolá.
Degredados filhos de Eva sem paz
ou coração aclamam-na no lugar.
O suor dos trópicos desgoverna minhas juntas
desconjunta-me. Sou um restolho de mal reunidas
partes a passar pelas avenidas,
denso de escravidão e poesia.
No cérebro, um batucar de mãos nervosas
sobre o punho dos remos nas galés.
Tenho a alegria do escravo
a capoeirar na senzala, e amo,
desmanchando-me de suor nas ruas.
O coração quer dormir, tranquilo
entre mendigos e ladrões nas ruas.
Minha casa é essa côdea,
minha moradia é esta rua, ampla,
que dá para todas as avenidas do mundo.
Meu coração quer dormir, o langoroso,
mas minha cabeça não dorme, infelicita-me.
Com os pés forjados em chumbo
descubro um universo que passa desapercebido.
É o limbo, limo, lodo do fundo.
Incompatibilizo meus repentes de felicidade
com a iniquidade das capitais,
com as propriedades fundamentais
da química da miséria urbana
que constrói essas cercas no campo
que separam nossas mãos e esperanças.
Sou um idiota a caminhar, ver
a ouvir e pensar gulodices
que a alma tenta experimentar.
Meus irmãos, quero ser feliz!
Minha felicidade mora na outra rua
onde o casebre desmorona deixando à tona
o festival de loucos presos ao absurdo.
Com os pés feitos de facas
abro uma trilha no piso de latas
querendo unir os dois lados do mundo:
a miséria sem fim
as mansões dos miseráveis.
Deparo com o City Bank à minha frente
e sinto-me pequeno, ridículo
rubro idiota.
A greve dos ônibus conduz-me à greve pela liberdade.
Estou preso a rubores que me invadem.
Negros batucam samba e idiotas andam.
Memória, secai! fazei-me esquecer tudo
e nada mais compreender!
Melhor a ignorância à compreensão dos fatos.
Melhor a fé cega à fé inabalável.
Deus evolui e de terno e gravata
conta-me milagres do monte das bravatas.
Sou cético: mula, cestos nas ancas, a ver missa.
O senhor afasta-se com suas premissas
deixando-me só a andar.
É assim, vazio e com pés de chumbo
que entendo a verdade de estar no mundo
no exato momento de regressar:
andar em círculos, como os idiotas
crendo haver de onde partir
onde chegar
sem greve permanente pela liberdade
cheio de crença no senhor secular
sem pensar
(degredados filhos de Eva,
ora pro nobis.)