ESQUECER

ESQUECER

Da minha janela

vejo o cais do fim do mundo

onde aportam todas as proezas

lançadas à areia deste infortúnio.

Lá, vejo angústias que caminham

e cada uma delas é a minha

a minha angústia de uma morte

abrupta, que me chegasse nessa hora

e deitasse esses quilos por terra

Vejo as angústias cercadas de carne

Passeando e a se esbarrar,

foliões dessa desgraça

que grassa como grama

pela terra negra debaixo do asfalto.

Houve um dia quando os pés

comiam terra e todos os velhos eram homens

sentados à soleira com bolsas de fumo no colo

beijando o fim do dia sem saber que o beijavam

e nem consentiriam no beijo s’o percebessem

que suas bocas eram de ferro e fumaça.

Muito embora a têmpera do tempo

fortificasse cada palmo de alma

naufragava o corpo no marasmo

de uma alma sem corpo que a suportasse.

E nesse tempo todas as mulheres, se não eram

felizes, não eram trôpegas e seus olhares

eram puro carinho circundado de amor;

quando chegava a tardinha

que os meninos iam ao banho

confraternizavam com a água e o destino.

Mas, achegou-se a este cais

a sombra enorme de um mal convulso

que contaminou cada pessoa

e minou todas as forças

até restarem apenas sons de passos

a emergir das escadas do desconhecismo.

Os homens envelheceram depressa

e as crianças tornaram-se pústulas

rapidamente. Mal as mães os pariam

já eram homens e depois velhos demais

com a morte a roer-lhes as pernas

tendo já caminhado a maior parte do caminho.

O amor que impulsionava cada embarcação

tornou-se memória encalhada em bancos

de tristeza que proliferavam sem sentido

e sem que o prático coração pudesse descobri-los.

Os barcos derivaram, e sem rumo pré-concebido,

deram no molhe defronte minha janela

onde acostaram, irremediáveis, postando-se

os falsos marítimos a ver o mar e sonhar.

Da minha janela os vejo, homens mulheres e crianças

exaurindo as forças tentando lembranças.

Vem a surpreendente e os apanha.

Tentam falar ou suspirar, gemer, ganir

mas ela é irrepreensível em sua obrigação

e os arrasta, mudos, para dentro de seu alforge.

Vejo-os, cá desta janela e tento orações

que lhes guardem as almas.

Sou obrigado a forçar emoções de dentro

do meu esquecimento

para lembrar-me de qualquer deus

que lhes dê bom caminho na última ida.

Pouco a pouco vejo-me esquecendo tudo

e medro de pavor de esquecer o que sou,

quem sou e a que vim.

Tremo de medo e ao meu lado homens

escondem-se em maquinices,

crianças chorosas sangram os peitos das mães

que têm olhares estrangulados

de pavor de nada protegerem os rebentos

que envelhecem nessa casa de grandes janelas.

Meu corpo exala o mau cheiro dos hábitos

dos que se adiantaram a ela.

Atenciono-me em cada parte de minha pele

em busca do ponto crucial que fede.

Nada encontro que os olhos choram

enquanto o coração amordaça-se.

Minha boca é um inferno

o peito, lodaçal

minha terra não é esta

nem minha língua este trapo

dependurado que putrefa sem que nada

deter possa a podridão.

Estou refazendo tudo.

Tentando reaprender para não esquecer

evitando, assim, que essa gangrena se espalhe

até enraizar-se em minha alma.

É para não levitar nesse limbo de esquecimento

que posto-me à janela como o guardião

que esquece que é homem

e tão somente vigia.

Para não esquecer, vejo.

E é vendo esses barcos que baloiçam

a qualquer vento,

que se engalfinham para não se perderem,

que tentam expulsar de dentro de si

todos os bolores de sentimento

acumulados na frustração de serem

que lembro e relembro

de mim

que sou todos e nenhum

no tempo.