DO HOMEM EM PAZ CONSIGO MAS COM A ALMA EM CHAMAS

DO HOMEM EM PAZ CONSIGO MAS COM A ALMA EM CHAMAS

Nunca saí de mim

Nunca vi lá fora

Tudo que sei

Aprendi por dentro

Sei que brilha o sol

Porque o vejo brilhar

Mas não sei da alegria do sol

Nem da tristeza do crepúsculo

Vejo uma lua que nada me diz

Embora a ela possa escrever

Cartas apaixonadas

De quem nunca amou de doer

Nada me comunica novidade

É como se tudo fosse sabido

Não existe emoção na vida

Exceto, claro, algum medo

A morte em que penso

É um final de sessão de cinema

Quando todos se levantam

Deixando restos de si

Queria não me levantar

Mas as luzes foram acesas

Penso nela como um levantar-se

Da cadeira após o jantar.

Construí algo de mim

Que sequer imagino destinação.

Além dos três destinos

Outro haverá para os a mim parecidos

Passei ao largo do mundo

Como navio fantasma

Que nunca atraca

Nunca nada de víveres

O marinheiro morto no convés

Que fica atento às bóias e luzes

Dos demais barcos posso ser

Embora finado, muito a fazer.

Os que desistiram de mim em vida

Acenam suas mãos felizes aos demais

Amassam lençóis; rugem nos estádios

Passam as noites entre rostos e risos

Eu fico só, na esquina de uma rua paralela

Observando como se porta na hora da festa

Tentando, frente ao espelho, ensaiar algum passo

Para encantar o que me observa sem esperança.

Por essas a casa não em reflexos

Cansei-me de inventar criatura

Como se fora o criador possesso

Que molda jarro de toda altura

A casa de uma única cadeira

É todo o universo que pude

As janelas abertas são gritos

Silenciosos a um povo rude

Nunca viajei para fora de mim

Conheço tudo em literatura

Minha vida é obra póstuma

Que não lerão por gastura.