ESTÁ NO AR
Observo impassível
A água marrom
Cheia de bitucas
Que corre ligeira
Na guia da calçada
Qual corredeira
Onde caiaques
De garrafas plásticas
Desviam de bueiros lotados
O mar com cirrose
E os rios
Com falência múltipla de órgãos
Não aguentam mais
O lixo humano
Sua mundana imundície
Seus dejetos
Tão cheios
De descaso
Os ônibus lotados
De rostos tão tristes
Tão cansados...
O céu cinza e molhado
Num último suspiro
Tenta lavar
Da terra inocente
As sobras das ceias fartas
Seus restos putrefatos
A enxurrada nervosa
Violenta intempérie incorruptível
Arrasta uma senhora
De cabelos mais brancos
Que o algodão
Um herói anônimo
Salta de seu carro
Mergulha na lama insana
E posterga o cadafalso da anciã
Da janela embaçada
Do apartamento da minha alma
Vejo um raio de sol
Que surge imponente
Por trás da nuvem negra
Na janela do prédio da frente
Um casal se beija
A vida revida
Com mais uma primavera