Certidão de Nascimento (ou) Viagem

Antes de ser já era eu na larva dos sentidos
de duas pessoas que se diziam amar e se calhar
se amavam…já era eu na película do tempo
que se chamava futuro.

Meus olhos, não sendo ainda olhos, já viam na noite
escura e inventavam a Luz onde somente trevas havia…
Meus dedos, desejosos já por escrever, nos meus punhos
fechados de revolta no ventre de minha mãe,
revoltavam-se por não terem a liberdade de ser
naquela prisão materna que se chamava útero.

Nove luas novas passaram na imensidão do infinito
e eu nasci! Fui parido numa noite fria, gelada
do mês de Dezembro, num dia onze.
Podia ter sido noutro dia qualquer, mas tinha que ser dia onze
do mês de Dezembro. Mais tarde inventaram-me um dia
seis dum mês de Janeiro qualquer que nem sequer
era meu. Mas foi no mês de Dezembro que eu nasci!
Tomem bem nota disso senhores tabeliães
que tomam erradamente nota dos registos do tempo.

Foi no mês de Dezembro!
O mês em que dizem que o Messias nasceu!
Ele, o único digno deste mês – dizem-me.
Mas eu também sou digno deste mês. Tão digno
quanto Ele, "gerado não criado consubstancial ao Pai".
Tão diferente porque gerado pelo prazer da carne
e parido dum ventre de dor em pecado
que me gerou tão erradamente.

Quando cheguei ao fim dessas nove luas gigantes,
cheguei com dores e sem cânticos ou trombetas celestes.
Nem reis magos com ouro, incenso ou mirra…
Apenas o cheiro da terra molhada e um frio gelado
a entorpecer as almas. E à espera de mim o inferno!

Meus dedos nervosos nas minhas mãos que se abriam
e fechavam sem parar, queriam abarcar o espaço
agarrar o mundo e o tempo…
E os meus olhos viram pela primeira vez, cá fora
essa primeira Luz que eu já vira lá dentro
nas trevas da barriga da minha mãe.

Gritei. Não chorei. Gritei. Gritei ao mundo no meu grito
sufocado, a revolta desta clausura eterna
de nove meses de vida, mas sem liberdade,
nesta prisão de Luz que me emprestava a vida.
Senti que estava vivo e pronto para começar a grande
viagem. A grande viagem do tempo presente
vindo eu de outra grande viagem de um tempo passado.
Uma grande viagem que me remeteria a um tempo
futuro talhado pelo destino que eu ia arquitectar
neste universo fluente.

Cheirei a maresia vinda duma praia distante
atravessando mares insondáveis nas gáveas do navio
do tempo. E ouvi na voz do silêncio
ditada pelos búzios vazios que deram à costa
vindos doutra costa ignorada, desconhecida, distante,
uma voz suave de mulher cigana predizendo o futuro.

Nessa voz do silêncio vinda dos búzios vazios
que sabem da existência dos continentes e ilhas
perdidas na lonjura da bruma da tarde e planetas
distantes, nesse espaço sideral doutros sistemas solares
onde se sonha o sonho de alguma amante
já amada um dia… sonhei!

Sonhei o fogo-fátuo da paixão que arrebata o querer
e quebra a vontade e esquece a razão. Vi esse fogo!
Sendo eu ainda acabado de nascer, vi o seu crepitar
e consumir-se eterna e permanentemente e diluir-se
no tempo. Nada é eterno! – pensei,
sendo eu ainda acabado de nascer.

E soube da música da água que corre nas fragas
e nasce da terra…essa música suave desse jardim
paraíso que meu espírito veria mais tarde
com o meu corpo preso à terra, mas ausente
em viagens celestes para além desta vida.

E soube da voz… dessa tua voz que sabia de cor
sem te conhecer mas sabendo eu da tua existência.
E vi ainda esse riso de mulher criança…
Vi-te no tempo em que não te conhecia.
No tempo longínquo dum passado presente,
de tranças negras-azeviche e longas, de cabelos-trigo-oiro
esvoaçando ao vento e olhos-lagos de puro cristal,
fosses tu quem fosses, mulher-retrato-paisagem.
Esperando por mim na planície do tempo
sentada à beira das águas que nascem e correm… existias!
Vi-te lendo o livro do tempo sob esse céu azul
e luar de lua cheia. E vi a tua alma por dentro.

Eras assim quando eu ao nascer já te conhecia
para além desta vida! Soube eu, do mundo, ao nascer
que um dia me consumiria nesse fogo-fátuo
de paixão e ódio. Eu que vim de tão longe
e antes de ti me quedei no fundo do tempo.

Mas não me perguntes porquê nem por onde eu fiquei.
Foi para além do tempo…
Esperei por ti que chegasses um dia.
E aconteceu! Mas eu parti de ti e de mim me perdi…
Nesse tempo me perdi sem mapas nem bússolas,
sem ângulos e sem bissectrizes do tempo.
E sem roteiros nem nada me fui por aí…

E tu, na busca incessante já do tempo em que vinhas
na voz dos búzios desse mundo desconhecido e distante
perdido na bruma, me achaste e perdeste.
E eu, Ser acabado de ser me encontro e me perco de ti
e me cego na vida que procuro no tempo.

E nesse tempo te encontro e te agarro com dedos ardentes…
famintos… sedentos de ter.
Como quem busca ansioso a salvação. Mas te perco!
Perdido e só, encontro somente o caminho do sonho,
desse sonho que sonhámos um dia, e digo:
Pelo sonho caminhamos!

____Alvaro Giesta
Alvaro Giesta
Enviado por Alvaro Giesta em 12/12/2012
Reeditado em 02/02/2015
Código do texto: T4032803
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