FARMÁCIA DO POVO

FARMÁCIA DO POVO

Ainda me restam uns fios de vida...

Que frio!

Vida sutil sob o céu anil de abril:

Farmácia do Povo.

O outono me rouba o sono,

deito e recordo vidas,

esparramo as feridas,

no cimento os meus sentimentos.

Dói meu peito...

De um lado vozes, ouço-as à distância,

ó que ânsia!

D’outro um muro enegrecido, ao fundo,

no pátio, num canto,

banco esquecido, abandonado: madeira desgastada,

sovada pelo tempo;

banco longo, estreito,

nele estou deitado;

o banco ao centro,

o corpo em desalento...

Esquecimentos, aborrecimentos,

cimento desenhado adornando as paredes.

Casarão antigo, o diálogo faz sentido:

dentro só a massa demente, fora o Casarão ainda imponente...

Meu pensamento dialoga,

e prossigo nestes mundos paralelos:

Casarão amarelo, e um branco encantador,

o banco, o recanto, eu distante,

um pouco hesitante,

contemplando a copa verdejante

da árvore antiga?! Tanto quanto a minha dor?

Pensamento atormentado,

então a você, Casarão, me entrego

em estado de torpor.

Levanto! do banco... vigília:

uma pequena ilha longe da multidão

estúpida, histérica...

Abro os braços em cruz,

deito,

lembro a figura de Jesus;

abraço o céu,

ai, o peso da gravidade!

Deitado de barriga para o alto,

coração agora não mais em sobressalto.

Ao lado, ah! o moderno prédio, arrojado,

de vidro preto,

todo sigilo, aquário de gelo, atemporal, ao sol desaparece,

não resplandece!

As suas manchadas paredes, não! Casarão,

a calha velha-emenda-semi-nova,

a telha-nova sobre telha-antiga...

rastros: a sobreposição dos tempos;

um vendaval

e você firme,

plantado na terra

finca milhares de fios-raízes subterrâneos

feito árvore centenária.

Você mais me recorda uma cantiga, Casarão,

uma modinha antiga;

diz para mim, só para mim: qual é a sua idade?

Eu nasci e você já estava aqui, Casarão, nesta cidade...

Qual é, então, a sua idade?!

Geração a geração...

Num átimo, troco a vigília pelo delírio,

e deito num mar de lírios,

no banco, lá do canto, no meu esconderijo.

Pedaços de céu calmo

acalmam a minha alma.

Ah, a minha alma!

Este canto, este banco,

este isolamento rente ao cimento irregular;

cimento, sofrimento e sentimento...

vestígios d’algum outrora lar?!

Corpo estendido colhendo fios de luzes dentre as folhas...

_ Não, não, não, Sol, não se esconda!

Ah, as minhas escolhas,

tolas, tolices, meninice

alguém me disse.

Renuncio às tolas decisões,

deixo fluir minha derrisão,

fruo minha desilusão

na quinta deste antigo Casarão,

meu Casarão, meu companheiro na aflição,

pleno em exatidão na construção,

num mundo em ação:

_ Cuidado! A implosão! A destruição!

Ei, Casarão,

aqui no meu ouvido,

me diz do olvido...

Vestígio, um sinal:

ei, Casarão, você já foi

Grupo Escolar!

Eis ali o galpão, um galpão,

atravesso o galpão...

Eis o inferno das vozes

que lhe arranca na raiz o encanto,

essas massas invasoras a

deformar os seus jardins,

as suas rosas,

os seus jasmins.

Folia nas massas,

epifania em mim.

Ah, um perfume estranho,

perfume de papel, de cola,

de lápis e de borracha,

de caderno novo:

estudo primeiro, estudos primários;

meu pai, minha mãe

e os nossos horários...

fios de memórias:

pequeno estudante; lancheira; soldadinho de chumbo;

parque infantil... muito sutis as realidades são.

E monto as minhas trincheiras...

Rastros, o jardim interno,

foi também lar, concreto-coração...

Contudo...

ó vozes torturantes, histéricas,

dissonantes, que morram

afogadas em meu vômito!

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é outono de 2007.