JÁ PASSOU

JÁ PASSOU

Ainda ontem ciclos intermináveis de lágrimas

pulverizando os olhos.

Ainda ontem cartas à mesa

e aquele jogo indesejável.

Ainda ontem o sentimento de perda

e, além de tudo mais,

a ofensiva, o tiroteio da agressão.

Ainda ontem a indeterminação

e os reflexos condicionados

na aliança implacável

com o desespero.

Ainda ontem momentos que

afunilaram a ameaça em que vivi.

E a lembrança disto tudo

é uma coisa muito negra para mim.

Por que esta consagração do sofrer?

Por que ainda ontem eu não poderia viver?

Ainda ontem eu percorri a área

onde implantava rudemente o cerne dos obstáculos.

Ainda ontem me mantive passivo

diante da adoração pela falsidade

que se farta em cada ordem

e se espalha como peste.

Ainda ontem estes aborrecimentos

que a muito custo pude passar.

Este peso invariável que não pode medir proporções,

tamanha a crueldade ameaçadora.

Ainda ontem expectativas indesejadas,

cristalizadas em temores imediatos

por motivo da obrigação

de realizar tarefas desinteressantes:

o cúmulo do mandato

extorquindo o coração

que não se interessa pelo lugar em que é obrigado

a viver e a calejar passivo.

Ainda ontem a espera refletida em cada atitude,

o fazer apenas para sair e esperar

e definitivamente partir.

Não se pode avaliar

o preço desse desespero,

o sofrimento que abala,

que ele desaba sobre toda a vida.

Ainda ontem, enfim,

este apavoramento sufocado

aguardando o fim da sentença

a desimpedir a doença.

E hoje, como se sabe,

o sentir-se leve.

E hoje, como se sabe,

a libertação instalando

palácios e simbolizando horizontes,

e o ar generoso

parece leve e sereno,

hoje, que estou liberto,

passo por cima do que restou ontem.

E hoje, como se sabe,

o ruído da desilusão

vai perdendo a sua força,

e o passado

vai encobrindo...

E, como se sabe, hoje,

digo passou,

enfim passou...

FERNANDO MEDEIROS

Campinas, é outono de 2007.