A URNA

Embasbacados,

os convidados assistem,

compenetrados,

o silenciar de uma das vozes do dueto

[há uma falta incomum de vozes]

não haverão mais pronomes na primeira do plural!..

há uma falta incomum de vozes

e uma saudade incontrolável das zoeiras.

numa urna, a cinza exposta,

guardados irão

todos os derradeiros sentimentos de Aristóteles

para com a Estelita:

a Estelita de Aristóteles!...

[há uma falta incomum de vozes]

me faz tanta falta a falta da tua voz nada incômoda

que tenho até a vontade de compor um nosso samba-paixão...

finda Estelita,

Aristóteles não saberá mais desembaralhar a imprudência dos ditos

[pretensiosíssimos]

que falam que o gostar só é possível quando há ternura,

que o amor é o filho mais adulto da paixão,

que as galinhas sabem parir ovos

resistirei a todos os cheiros de Semanas Santa!...

[há uma falta incomum de vozes]

fica mais um pouco comigo, Estelita! Só mais um pouco comigo...

o silêncio que mora na cara de cada um dos presentes

irrita-me

não só pelas incompreensíveis orações

como também pelas expressões prontas de pêsames

[há uma falta incomum de vozes]

cantem uma música qualquer. Qualquer uma da parada de sucessos,

ou aquela canção que fiz, sem querer, você chorar.

todos, ali presentes,

sabem que a Estelita foi anulada por Aristóteles,

e que o forte Aristóteles não é nada sem a frágil Estelita

[há uma falta incomum de vozes]

debochem de mim, pulhas encruados!

contem, sem pé do ouvido, piadas de portugueses e de papagaios,

mijem em todos jarros de flores desta capela-martir...

[há uma falta incomum de vozes]

todos pensam, indisfarçavelmente, que estrangulei Estelita.

ao pó da estrela, ela voltará!

não relevarei jamais ao público se a beijei ou a matei.

sou o Aristóteles da Estelita!...

fecho a urna e a mim:

que sensação inexplicável de cinzas.