Ruas

já andei por todos os cantos

dessas ruas sujas

conheci cada nuance

cada detalhe sórdido

e histórias não contadas

empesteadas de odores,

arrependimento e pecados

estive sempre calmo

boa parte deles eu já cometi

mais erros que acertos

na vida

e (quase) nunca me arrependi

talvez devesse

tantas vezes por suas vielas me perdi

e por não conseguir chegar

a algum lugar

nelas me acolhi

com cigarros demais

e bebidas demais

tantos ideais derramados

pelas rachaduras

que fizeram parte de mim

uma montanha de contradições

e contrapartidas

tanto andei pela penumbra

desses becos

que ela costumava sorrir

pra mim,

como um velho

e bem vindo conhecido

uma ótima anfitriã

a sua maneira

mas um dia o cansaço me atingiu

e notei

que tudo estava mudando.

os pecados de outrora

já não eram tão atrativos

os erros que cometi insistentemente

ao passar dos anos

já não tinham o mesmo sentido.

conforme o tempo avança

cruel como uma navalha

na mão de um assassino

essa antiga familiaridade

aos poucos me assusta

e onde certa vez me identifiquei

senti repulsa

e meu próprio eu me expulsa

sem gentileza.

já não conheço mais minha cidade

nem as ruas

nem suas intenções

nem nada

não somos mais os mesmos

e ela dança conforme a música

tocada por pessoas

que tentam ser perfeitas demais

tendo defeitos demais.

vejo apenas uma foto

desbotada

do que um dia fomos

eu

a cidade

e as ruas.

elas sentem saudades

eu não.