Que histórias não contava

Houve tempo em que morrer era algo grave, solene

Entristecia o sol e acinzentava Selene

Era tão bom ver gente passar na calçada

Olhar a rosa na roseira

Molhar as pequenas mãos nos pingos da madrugada

Ficar enamorada do filho do dono da bodega

Só porque tinha uma Monark

Ter amiga pra brincar de pinto-galo

Caderno que valia mais que o namorado

Ir ao cinema de vestido novo, sapato bem aprumado

Que tempo bom de sentar no banco da praça

Que tempo bom de tanta inocência

De achar imponente o soldado batendo continência

De se emocionar ouvindo hinos patrióticos

Houve tempo em que homem era mistério

E a maternidade um ministério

Tempo de sonhar com o amanhã

De o dia demorar tanto

E a noite com seu encanto

Dormir na cama cheirosa

O brilho das estrelas lá fora

Os gatos miando no telhado

Os cachorros amedrontando ladrões

Houve um tempo em que o orgulho da dona de casa era a peça paneleira

E brilhando a mais não poder

Encabeçava o conjunto de alumínio a senhora chaleira

O marido, sentado à mesa, bem postado na cabeceira

Os filhos sorrindo, conversando

A mãe dividindo os pães

Pensava longamente

E a gente nem sabia

Nem sonhava

Naquilo que ela pensava

Que sonhos escondia

Que histórias não contava