Atonalidade

Mais do que apenas desejando, as vozes antigas estão se despedaçando.

Andando devagar pelo vasto dos campos insólitos, se agrupam e, por isso, não morrem.

São projetadas, algumas vezes repetidas.

Transmutam-se entre o esquecimento e a efemeridade.

Olhando através da janela, me parecem calmas.

Mas como bom vivente, percebo os pequenos olhos desesperados.

Pequenos, mas lá estão.

Pelo tempo que caminham, acredito que já não sobra muito de suas essências.

Algumas, já roucas pelo fumo e pela idade, insistem em contar-me novidades passadas.

Desenterram clipes soturnos, cantam alto. Um canto de luto.

Há de ser a ganância que as exilou, mas também por ganância eu as escuto.

Tendendo ao obsoleto, aprumo os ouvidos e tateio seus bolsos enquanto falam.

Encontro um esquisito contrabando.

Usurpam suas lágrimas e trazem consigo dentes amarelados em um sorriso escarnecido e gozado.

Riem sem saber o porquê.

Talvez, se soubesses, não teriam andado tanto.

Tais vozes, quando descansam, admiram as auroras.

Provavelmente por serem tão velhas, espantam-se com tudo o que é precedente.

Não se identificam com nenhum destino. Nem alegorias de sua própria história, nem previsões de seus oráculos.

Respeito sua intempestividade e a forma como marcham.

Elegantemente marginalizadas, descortinam-se vagarosamente.

Cogito a necessidade de sua existência.

Não me pego analisando seu caminho, pois nunca me interessei em saber seu rumo.

Não me interessam pelo espaço que ocupam.

Essas vozes legitimam sua participação no universo justamente pela habilidade de não pertencer a nada.

E é nisso que discorrem seus gritos desumanos.

Se não é possível que pertençam, então que desapareçam todas as ordens.

Sem a força que almejavam possuir, entram em defasagem e desencaixam.

As vozes antigas constituem sua própria exceção.

Se procuram, renunciam a espera.

Se encontram, perdem-se em sua própria definição.

Eu sigo as observando.

Certo de que jamais as entenderei, ainda me fascina por sua obstinação em seguir.

Arrependo-me apenas de não tê-las acompanhado.

Observar é sempre perder palavras.

Para essas vozes, palavras jamais faltaram.

Só não restou quem as ouvisse pronunciá-las.

Fernando Cesar
Enviado por Fernando Cesar em 29/11/2014
Código do texto: T5052926
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