O VIGILANTE NO ALPENDRE

ainda me lembro do cheiro da casa da vó,

da mobília claudicante e da imponência decadente;

franzo o cenho e me volta toda a cena, incandescente,

das réguas do assoalho empalidecidas pelo pó.

ainda me lembro dos quadros sem charme nem valor,

emoldurados em falso dourado, metidos em pregos,

como olhos serenos, testemunhais porém xumbregos,

atentos ao movimento e à modorra daquele bangalô.

ainda me lembro dos janelões delicadamente opostos,

cuja luz esverdeada banhava toda a sala de esmeralda.

nada havia para se fazer senão ater-se àlguma lauda,

rabiscar brochuras ou sair à caça de desportos.

ainda me lembro do jardim que se corrompeu em coutada,

do colossal jerivá que sucumbiu antes de minha puberdade,

dos manacás cujas lagartas gozavam de escandalosa liberdade

e da costela-de-adão, do girassol e da goiabeira amputada.

ainda me lembro da faiança decrépita por onde nos vinha o repasto,

dos talheres opacos, do cristal derrotado, do linho carcomido.

ainda me lembro do café coado, do pão murcho e do arroz cozido

do mentruz, do confrei, da couve colhida, dos víveres dados-nos a basto

ainda me lembro da moringa, do balcão, da pia cujo sifão regurgitava,

do fogão esmaltado, tão miúdo que se quase o tomava por brinquedo;

ainda me lembro das míticas noites em que nos deleitávamos no medo

de cruzar o caminho de alguma alma penada que por aquelas plagas vagava.

ainda me lembro do saci, da velha enlutada, das garatujas por trás das vidraças,

da pobreza do pomar de onde saiam apenas horrendos caquis flácidos,

da magreza de certos pés cheios de lagartas e limõezinhos pouco ácidos.

ainda me lembro de, certa vez, ter encontrado de um pardal apenas a carcaça.

ainda me lembro da enfermidade anunciada e da morte pontual,

do fim do filme e da troca da fita sem pausa para a pipoca

ainda me lembro que se tomava leite da vaquinha Mococa

ainda me lembro que se pintava as paredes com bisnaga e cal

ainda me lembro que ler depois de comer fazia mal

então ninguém lia...