Heranças

Minha avó não dava caso

ao me ensinar a bordar

que meus novelos seriam palavras

e o poema a tecedura de minhas

dobras e linhas

e do olhar para as bordas

fora e dentro de mim.

Minha mãe também não concebia

ao me conceber

que me instigaria a coser

com o seu e o meu cozer

e que as palavras

sempre e já

ficariam marinando

numa perfumaria sem conta

de erva e condimento

no tempero do alimento

de uma fome que me deixa tonta.

Meu pai então nem suspeitava

que a arte de sua pesca

seria também da filha

continente e ilha

a visitar Pasárgada

de barco ou canoa

na popa ou na proa

ao vento que rasga a pele

do mar ou dos rios.

Meu avô contador de histórias parecia

sentir as histórias que a neta escreveria

quando a menina saiu do sertão

e as cartas passaram a chegar

nos embrulhos de papel de pão

amarrados com barbantes

cortantes feito palavra

a guardar o sabor de goiabada

e doce de leite no Curral Del Rey.

As cartas pediam resposta.

A menina descobriria

antes da filosofia

nada ser tão dignificante

para além do logos pensante

quanto poder responder.

Co-responder.

Colocar-se com o outro.

Nunca sobre o outro.

Acolher nas profundezas de si.

E se remeter.

Desde então,

nunca saiu do sertão.

E nunca houve trama.

A trama é ponto alto e cheio

no tecido vivo das palavras

endereçadas ou lançadas ao vento.

...

Sementes ou cinzas

de uma herança escolhida.