TALK HOTEL

1

Os instantes - gosto do instante - mais envolventes da narração são as expressões das personagens. Como se ficassem em silêncio, estáticas ou dançando, apenas figuras transitando num vazio etéreo. Imagino um diálogo absoluto, decorrendo de corpos como signos de uma escrita material, quase, quase indecifrável. Por isso, volto sempre a esse lugar para o reinventar até à sua própria diluição.

2

Nada a lamentar. Sonhei um deserto, real, um deserto ao nascer da noite. Onde estive. Imagens esculpidas num lugar de areia. Ontem, esperava um enlace de estrelas, um roteiro novo para viver. Vinha-se pela estrada com os olhos fechados. Ficávamos emudecidos, trocando os dedos das sensações. Num intervalo, a pele de um lugar, um lugar para onde se viaja. Os retratos lembram-me a presença da solidão, estas aves contornadas no horizonte como signos. Nunca sabemos o que somos. Nunca sabemos de onde viemos. Nem os jardins aqui expostos, a melancolia – sabem. Quero dizer-te ao ouvido do vácuo. Alamedas, brilham aqueles olhos como lâmpadas verticais, o assédio manifesto da solidão, repito, repito.

3

Confunde-me. Troca os teus ombros, divide em mim as tuas artérias. Diz-me que o dia será pleno, o mar está próximo e a diáspora dos navios seria o vento das velas. Nunca sabemos – nego de novo - onde estamos, por que viemos escutar o ruído das sombras. Não estilhaces a memória, os fragmentos espelhares da vida, sobre a varanda do real crescem bosques pelos edifícios iluminados dos condomínios. O que fizemos destas imagens que nos assaltam? Penso para não pensar, tinha toda a paisagem na respiração. O frio na garganta me lembra de mim, numa outra distância onde fui. Os hotéis num postal das cidades, a ilusão valada de quem adormece sob uma felicidade inexplicável, agora, talvez, quando?

4

Nada a lamentar. Confundo-me. Pode-se reunir a vida num álbum. Folheio vidros ou vultos, as mãos profundas ou os braços que foram asas pelos bosques da alegria. Ou. E. Narro. Sob a luz. Ouço o mar, os terraços por onde entra o mar, o corpo ao fim do dia numa hora eterna. Folheio os fios do instante – ainda. Correspondo-me com o futuro numa estranha troca de mensagens. Sem mágoa, sem curiosidade, sem silogismos de conclusões definitivas. Palavras de ocasião, talvez o futuro se dobre na intimidade de uma esquina. Como nessa penúltima manhã de uma viagem sem regresso. Talvez, de momento, outro mar narre aquele dia imenso de ontem.

5

Onde estamos, onde a luz se reflecte sem mudança, diria fixa na sua orla luminosa, evidentemente. Por esta abertura, até recolher a ventania dentro dos pátios, a solidão dos olhos límpida exposta aos filamentos do dia. Não encontrar senão o vazio inicial e ficar assim como as páginas em branco de um início sublime. Talvez. Talvez os lagos se desenrolem na tarde longa e próxima e escreva o silêncio de outras sílabas crescidas como pétalas sobre a boca. A realidade mais concreta, este pulso, a linha dos teus seios, onde estávamos com a paixão naquela hora.

6

E os navios serão os navios para sempre, a paisagem deslizando sob as pálpebras, uma sala de janelas escancaradas ao desenrolar duma história célebre, as mesmas frases nunca pronunciadas, vagar quando o tempo escorre paralelo à relva cortada nas traseiras do infinito, ou dos terraços deste bar sempre aberto. Sim, o que falta viver aqui, além da água diluída entre as pedras quando chove. Um candeeiro aceso de um qualquer quarto de alguém. A vocação maior da pose séria de quem medita, certa reflexão por cada teoria filosófica, ou a memória como um vapor de encontros literários. Aperfeiçoam-se axiomas pelos filtros de uma problemática assim - entre vogais de uma angústia nocturna e mesmo poética.

7

A saída é até ao meio-dia, a grande luz solar, plena. O hotel terá ainda os seus amplos espaços por preencher, ou por viver. (como disse). Deixo no quarto a minha presença num caderno de apontamentos. O amor e as palavras mais exactas ao cair duma certa tarde, quando a brisa faz ondular as cortinas cruas, suavemente. O mais é a desordem de emoções, um candeeiro ainda aceso, toalhas, lençóis, papéis por arrumar. O mundo em redor onde tudo será sempre uma eterna hipótese.