Canção de despedida
é preciso cuidar de certas sujeiras da vida.
o resto de vinho no canto de tua boca que me espreita
o som de tua mastigação dura e contínua do outro lado da ligação
travesseiros embotados de lágrima,
minhas lágrimas;
a latrina que é íntima de todos na casa.
se aprende, vivendo, que mesmo na podridão dos dias atuais
há cheiro de coisa nova
e que
quando se morre,
as portas para a vida se abrem, novamente,
cálidas como as rosas (feridas) de Hiroshima.
crescer, meu amor, é descobrir
que minha raiva e meu impulso para a perversidade
além de traírem juntos a calma de meu rosto apático,
não passam de sinais de minha imaturidade para a vida.
e que para crescer é preciso engolir certos choros e continuar em silêncio;
que saber viver é ter sangue frio e
que terei sempre a vileza que têm os natimortos.
a vida, meu amor, a vida que me dizem
não sei vivê-la.
sufoco sozinha nas teias dessa realidade que me pede
copiosamente:
“acorde”.
a vida, meu amor, a vida que me dizem
é preciso mais de uma versão de mim
para vivê-la,
porque talvez mesmo três idênticas
não deem conta
do peso crepitante
que carrego
nas mãos,
nas costas,
no olhar
por não ser ainda
quem sou.