PALAVRA REFORMADA

esta luz

no meu peito registra

um momento descontraído

e mapeia território livre

delineia fronteiras

de um país recém criado

com o escuro em volta

a luz

no meu peito esboça

a silhueta dum barco

poema vento para vela

a luz

no meu peito ancorada e certa

é luz direta e por isso arde

na pele sem doer quando

lança em dégradé

nuances ao fundo sem forma

da pessoa que goza

este momento descontraído

é uma luz

que demarca meio eito

uma sesmaria ou quadra, quarteirão

luz de arado ou de lápis creon

ara sulcos usando sangue ralo

para fazer tatuagem à lazer

é uma luz

que viaja milhões de anos luz

e lá do distante comunica

no sonho dos idealistas um grande feito

é luz que avança tímida

sem cor ou idade

é palavra reformada

cateter para as veias entupidas

da América portuguesa

que desde o século dezoito

insiste esmagar o tempo presente

luz força da palavra

sobrepondo a ganância da tirania,

a voz do consenso

e a moenda da ignorância

luz que desembarca verso livre

e no meu peito decompõe

sem contudo deixar de ser

o contorno de centenas

de torsos de homens cativos

contra vontade trazidos ao trabalho

homens escravos dos grilhões potentes

da política déspota de obtusa razão

que funciona como dependência fármaco-mercantil

para adolescência eterna angustiante

a luz, aquela luz

acolhida bem apanhada

cria tal retrato do gênero sobre o qual

se diz detentor do falo mas se encontra mutilado

esmagado pelo mito de não ser o dono da fala

do traço

o incômodo desalojamento dos sentimentos

sonho de homens antes libertos

tantos como os que trago embrulhados

no peito desfeitos no facho dessa luz

homens brancos

homens negros

barítonos

gays

contraltos

altos ou feios

bonitos ou baixos

héteros ou gordos ou magros

ou nada que os distinga

pois têm apenas o falo impotente que os una

todos escravos assediados

desconhecedores da própria voz

igualmente eunucos sem palavra

inscritos em cem mil anti-abrigos

homens que em meu peito agora abrigo

sob a batuta harmoniosa dessa luz

que no meu peito registrada

este momento de compromisso

na fronteira de um país recém criado

luz

tão própria, palavra reformada

que insufla os ânimos e canta

para os desapropriados, casa

para os desalojados, morada

para os odiados, paz

para os descalços, sandálias

para os desanimados, caminho

para os inermes, ação

para os sem pátria, língua

para os perplexos, chão

para os desenraizados, vaso

para os aflitos, abraço

para os martírizados, louvor

aos levados em sonho, vela

aos cativos, abolição

aos de má sorte, vento

aos filhos da sede, luz

esta luz que aporta livre nos meus versos

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 22/03/2017
Código do texto: T5948813
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