poesia diária e outras afetações

poesia diária e outras afetações

poesias

alessandra espínola

(2017)

I

nem um luar no sertão

nem um raio sobre a cidade

nem um estampido

nem murmúrio

nem grito nem vozes

nem passos nem ecos

nem clangor de alma

nem nada

só a (minha) escura e silênciosa vastidão.

II

os meninos são cheio de alumiações

eles todos soltaram pipa

correram na chuva

cairam no chão

jogaram bola no lamaçal da olaria

um tinha olhos feito duas continhas azuis

outro usava viseira de olhar o mundo

outro tinha olhinhos de gude

outro ainda de luzes

um embala infantes recém-nascidos

outro levanta bandeiras

outro ainda cultiva o menino no rosto em seu sorriso abrasador

outro bebe à noite em seu barril de histórias

tudo índio cariri

com suas cirandas afogueiradas de vida

e tempo.

aos meninos da rua da infância (região de olaria e brejo), ainda naquele tempo eram índios descalços brincando em torno das taperas.

III

caminho de casa

lua no beco

sem ter morada

**

o muro da igreja da penha

me une ao que sempre fui

pedra, planta e som de sino

**

o tempo me acena

na folha seca

que cai

**

nas folhas das árvores

a lua começa a pousar

pirilampos na noite

**

a igreja da penha

é feita de pedra

índio e áfrica

**

no interior do quarto

o silêncio em bando

pronto pra avoar

**

bando de pássaros

pousam nas palavras

de minha árvore genialógica!

**

é verão

chuva anda

se escondendo do sol

**

IV

ainda na garganta

o pássaro sem nome

a bater asas - no nada

agonia sem dormitório

V

entre os olhos

lua páprica de sal

estátua de olho vazado

boca lacrada de silêncios

lâminas em corte lento

florzinhas coroando ao redor

e o véu disfarçando

o abandono ao relento.

VI

a palavra vinha

como uma serpente de dentro

já quase desenrolada no peito

crescendo na glote e palato,

desdobrando-se toda

saindo à boca,

seu veneno guardado

em minha língua-lábio

VII

farpas cultivando espinhos na carne

horas de fio elétrico

desencapado

olhos vítreos

gerânio de ovários

isca de caos

fisgando o silêncio

luminoso do farol

VIII

nos degraus das vértebras

a casa em desconstrução

é reinventada à martelada

a gata se deita sobre meus poemas

bela esfinge

a perguntar em silêncio

IX

no fundo espesso da antiga gaveta

mexo no mumificado de palimpsestos e xilogravuras

toco os cedros no fundo

há o fosso de minhas difitais

raízes no caos.

aproximo a gaveta de meu ventre

coberta de mosaico hibrido

de pó cinzas pedras conchas

pétalas secas, umbigos enrolados em papel seda...

acendo a memória com uma vela

e uma cantiga de ninar palavras

colho em minhas mãos como recém nascidos

o corpo das palavras

olho ao redor revisitando a casa

paredes rabiscadas eram mensagens sem destino

luzes na escuridão

desenhos plantados na rosa dos ventos

a rosa brotada no miolo do ventre

fogueira no centro de uma caverna

a rosa e o fogo destroncam

dos sombrios escombros entulhados no peito

a rosa em chama rutila como uma estrela

na escuridade noturna de meu céu suspenso

- um móbile na solidão de um quarto

X

no meio dos escombros

à hora ruborosa do ocaso

o céu sobe na asa do pássaro sem nome

pétalas lamparinas

da florosa luminosa

voam entre os entulhos -

-caminho sobre eles

XI

corria de braços abertos

com as mãos em soco

(tentando tirar o travo no peito)

pronto para o pranto

e o cais sem porto.

olhos embotados

ombros embutidos

prontos para agarrar esse desespero vivo

ávida agonia que atormenta.

sem resposta nem fala

um questionar sem fim

desembestamento inútil e doloroso

trajeto de pensar sentir

como quem vive no lodo

lesma no sal

vê estes olhos em coma ao sol?

tudo oculto no caos

nisso não há nada de lírico ou lúdico

só nítida realidade onírica.

XII

palavras em mim explodem:

são poemas

plutões

**

vida é escambo e o escambau

além de carnívora

não sou flor que se cheire

**

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 26/12/2017
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T6208929
Classificação de conteúdo: seguro