Fúnebre jogral

Descendo as serras igual à chuva,

Correndo os vales igual ao vento,

Descendo aos corpos como arrepio,

Fúnebre jogral nos anuncia:

- Havemos de roubá-la, havemos de roubá-la!

Foi um martírio a noite inteira,

Só agora, manhãzinha,

Vozes cansadas então se calam.

-... !

Folhas de goiabeira,

Manhãzinha ainda,

Cheirosas e cheias d'água, orvalhadas...

Manhãzinha ainda,

Nós sairemos e brincaremos

Com as gotas do sereno da madrugada.

- Quero abraçá-la, vou apertá-la,

Seus olhos vivos hão de ceder,

A boca de jambo, macia polpa,

Tem seus impulsos de recusar

Mas – obediência - então se cala

E o corpo jovem, cheiro a jasmim,

Muito mais fácil há de entender

- Não quero perdê-la! Não quero perdê-la!

No céu escuro, na noite alta,

Ventos primeiros de fim de ano;

Seus olhos mortos, ardendo em febre,

Trazem augúrios de desenganos.

Ouvidos meus escutam longe,

Como estivessem cheinhos d'água:

- Havemos de roubá-la, havemos de roubá-la!

E a chuva desce, chuva menina,

Envem das serras, escorre em valas,

Afunda grotas, derruba os pastos,

Em voçorocas.

Miro seus olhos, olhos mortiços,

Já olham longe, além da vida,

Já não entendem o que lhes digo,

O lábio escuro não tem mais fala,

O corpo novo consente em tudo,

Como se fosse todo mundo

Seu grande amigo.

- Não posso perdê-la, não posso perdê-la!

E o fúnebre jogral em contracanto:

- Havemos de roubá-la, havemos de roubá-la!

A mesma chuva, o mesmo orvalho

No ano novo, molhando as mesmas

Folhinhas novas de goiabeira.

Na casa velha, já manhãzinha,

Queimando ao sol, existe o Nada.

A outra voz sumiu

Como evapora

O sereno da madrugada.

(Pitangui, MG, 1968)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 28/12/2017
Código do texto: T6210444
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.