O SOM E A NOITE
O SOM E A NOITE
Escuto um som que vem das coisas,
do vento,
das paredes,
das árvores inquietas com
o calor aprisionado nas folhas
das nuvens que passam sem aceno,
das fotos que encerram o tempo
em redomas de saudade,
das ondas cálidas que cobrem os arranha-céus
e produzem pássaros negros que mergulham para o asfalto
A poesia se perde no desvario
de um ser que se conecta com o som
que vem das estrelas,
criando um vácuo
a ser preenchido pelas desculpas
dos que amarraram seus pés em correntes de cera.
O som permanece escorrendo pelas escotilhas
de um navio abandonado
onde as baratas nucleares chupam o sangue
dos mortos-vivos entorpecidos
pelas mentiras que durante toda a vida
formaram a base de suas existências.
De um disco de vinil empoeirado
vem o som dos Beatles.
Tomo um copo de cerveja,
acendo o cigarro,
e mergulho no oceano dos sonhos
na busca incessante do sentido
ou do sol que poderia dissolver da minha cama
a escuridão que sufoca.
Como um Sísifo
empurro a ponta da caneta
para a direita seguindo um esboço imaginado
das razões de estar a mil quilômetros
daquela que uma noite aqueceu a minha cama
e se alimentou das flores que lhe ofertei,
mas da extremidade da linha uma força
me impulsiona para a esquerda e não consigo parar
de falar do som que me sai pelas unhas e dedos
e vai se juntar às vozes amigas dos que partiram sem aviso
tornando a minha noite mais escura.
Estremeço
imaginando o vazio do som
onde outrora estalavam beijos
e suspiros de corpos suados.
Do alto dos meus anos
a história se repete
e novamente a tristeza de uma solidão
se junta à melancolia das fotos desgastadas.
Conto apenas com a força dos meus dedos
e a pouca luz dos meus olhos glaucômicos.
Por fora a noite se alonga em sons de festa
e ruflar das asas dos vampiros,
por dentro o negror de minhas veias
são agulhas ferindo lembranças adormecidas.
Procuro o porto onde a próxima partida se dará.
No vaivém o sangue se aquece,
O som enlouquece,
As luzes piscam,
quando de repente uma mulher
chama o meu nome em sussurro,
parte de mim morre sem contemplar a terra prometida,
sorte que a música da vida nunca para
embora os compositores
já não encontrem as notas para compor.
O som vem do fundo das coisas
mesclando a luz,
o medo,
o desejo,
o suor das mãos,
dos risos dos negros,
tudo em uma paisagem pintada por um fauno amigo.
Novo gole de cerveja e os Beatles ressuscitam.
Não e a embriagues que incomoda,
mas a sensação de que o som vai acabar
e o vento levará para longe de mim
o aroma excitante de um corpo de mulher.
Louco!
Gritam as palavras que me escapam pela ponta da caneta.
Louco!
Não vê que a chuva lavou o asfalto,
os homens já se foram
e a mulher de seios grandes se lambuza
com o sorvete dos marinheiros solitários?
Resta-me içar a lança qual Quixote
enfrentando os moinhos de vento
para provar que sempre se pode tirar uma pérola
do fundo de uma ostra apodrecida
para adornar a cabeça branca de um pescador de sonhos